segunda-feira, 6 de junho de 2022

Divina barriga

  Uma fenda no abdômen do louva-a-deus e um outro mundo, com perplexidade, é desvelado. Sem elevadores, sem copo de uísque atirado na porta, sem varandas gourmet, esperando pelo sábado, sem saídas de emergência ou mentiras de emergência — que também podem ser saídas — sem carros blindados e óculos escuros, sem salários atrasados, sem o Lattes ameaçado em uma plataforma constantemente insegura, sem desculpas, arranhando a garganta ou remorsos mofados. Um mundo sem certezas e com espantos, sem títulos e com batalhas vitais, sem viagens internacionais e com desejo de aterrissagem sem feridas.
 
  A barriga aberta do louva-a-deus anuncia que a sutileza ainda é vista, que a delicadeza na fauna também é reverenciada. 
  Não é um panda em idade reprodutiva, à beira da extinção e, por ora, sem parceira; tampouco uma foca recém-liberta de um parque aquático, depois de denúncias de ex-funcionários, não é um leão albino, órfão e único da espécie vivo, nem elefante cinza quase alvejado num safári turístico, que se tornam notícia, mas um inseto cujo o corpo não ultrapassa vinte centímetros.

   Um louva-a-deus, num dia qualquer, calcula mal seu pulo, se desequilibra, cai de um guarda-roupas, tem o seu ventre exposto e uma centena de pessoas se surpreende com a imagem dos pequeninos pontos na sua barriga. 
  Quando o inseto é socorrido, de repente, a antiga estrutura da importância é interrogada. Uma escala tão diminuída abala em proporção inversa as crenças, as certezas, a ética da vida. 
  E se eu, um metro e oitenta, homem forte e instruído, dois filhos, uma cafeteira, com um apartamento e carro financiados dividir com um louva-a-deus um mesmo degrau de provisoriedade?
   E se o inseto de corpo alongado e o homem de botas forem tão vulneráveis num mesmo mundo? Se o abdômen humano e o do louva-a-deus podem ser rasgados numa queda e suturados em uma emergência, por que para só um a marcha fúnebre é cogitada? 
 
  Divina é a barriga, frágil é a existência em um mundo gigante ao redor. Por um instante, futuro nenhum existe mais. Sem promessas, sem esperanças, sem uma varanda gourmet preparada para o sábado. 
  Um salto mal executado e a vida escorre pela fenda aberta. Sem amanhã, sem perdão, sem finalmente ir ao analista e admitir que sozinho não pode mais, sem o refrão do beijo partido, sem o detergente amarelo na louça, que é lavada depois do jantar alegre, sem os filhos criados, sem os dois ingressos guardados no envelope e ainda não oferecidos, sem o último bilhete, colocado no aparador da sala  — Fui buscar pão. Te amo. Faça o café, se puder.

  Louva-a-barriga de Deus. Neste mundo que quase não vemos, também há outras vida desejadas. Muitas. Algumas com bem mais de vinte centímetros. Mas se não atravessa, não existe e se não existe, não doerá a passagem. É esse o olhar que eu rejeito; é essa a existência na qual não aceito mais caber.
  Um louva-a-deus é levado ao veterinário e, subitamente, um mundo de outras proporções é percebido. Com estruturas delicadíssimas, órgãos internos à prova, secreções reveladas e sonhos em suspensão. Um inseto, em pose monástica, não sucumbe instantaneamente à queda e também quer viver.

  Um artrópode fêmea, chamada Karla, coloca algumas certezas em suspensão. Vinte centímetros da existência que não foi expulsa à chineladas pela janela, mas acolhida, reverenciada e desejada. Um mundo que não este, de repente, é narrado na matéria jornalística e aquele outro, pelo qual passamos todos os dias de olhos fechados, também espera pela anunciação. Há, neste instante, milhares de ventres abertos que desejam continuar a viver. 
 A barriga de um louva-a-deus dá à luz a uma nova possibilidade, a perspectiva dos que olham, com ternura, para o que sempre pareceu mínimo. Eu quero estar ao lado de quem também costura a Karla e não de quem a espanta à chineladas.




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