domingo, 19 de junho de 2022

A vontade de mudar um país é que não muda

  A sensação de não pertencer a um grupo, lugar ou  tempo presente não dura para sempre. Se dissipa ao encontrarmos uma pessoa, num dia, e dividirmos com ela a sensação de estarmos em casa, mesmo que a muitos quilômetros de distância de onde nascemos ou moramos  — a inadequação é também instável.
   Antes de compartilharmos uma música ou qualquer trecho que seja, um sentimento, a cena de algum filme, uma opinião contrária ou favorável a uma mesma coisa; andávamos em calçadas paralelas que, de repente, se entrecruzam. Caminhamos juntos por três quarteirões, mil quilômetros ou dois continentes até que, de novo, somos assaltadas pela solidão de não cabermos.
 
   O desejo pela presença de alguém a quem subitamente nos ignora, maltrata ou simplesmente não nos quer, também abandona. É possível atravessar um deserto, amá-lo, é possível até mesmo carregá-lo, mas dividir um deserto não.
  A narrativa interrompida ou enredo bruscamente modificado frustra; tal qual engolir areia ao ter que atravessar um deserto.
  Amar também muda; quem é amado, mas principalmente quem ama. Amar interrompe a desolação e a aridez da travessia. Mesmo que voltemos aos desertos depois de tudo, já não somos as mesmas tuaregues, beduínas ou berberes. Conhecemos o oásis e isso ajuda a querer estar nele, de novo.

  Querer mudar o cabelo depois de um término romântico ou convalescença, também muda, quero crer; se não nessa semana, na outra. Se não for assim, vou ao cabeleireiro. Ter outra cara ao olharmos para o espelho, inventava uma nova personagem. Essa que não chorava mais, até a semana que vem.
  Mudar de itinerário, roupa preferida, lado da cama, o corte de cabelo ou penteado não apagará a história que não deu certo; sabemos hoje, quase carecas. Mas esvaziar o tanque de mágoas e deixar romper a barragem das pequenas decepções, isso sim modifica a trajetória de qualquer anti-heroína. 
  Não esconder ou exibir demais a sandália arrebentada, mas continuar andando; não lamentar ou publicar o bolo solado, mas comer o que possível dele, com café. Até o jeito da mudança muda; o cabelo permanece, a maneira que nos enxergamos no espelho é que se torna outra.

  Querer abandonar o emprego, costuma mudar depois de um fim de semana feliz ou feriado prolongado. Às vezes ao dobrar a esquina, às seis, já resolve. 
  Desejar outra casa, outra vida — qualquer uma que não esta — também muda, quando reconhecemos que o abismo mora em todas elas.
  O choro também se transforma, especialmente as razões pelas quais manchamos de tristeza a camiseta; até a intensidade varia. Mas não nos libertamos nunca da posição mais remota e primitiva, de dobrarmos os joelhos, escondermos a cabeça entre eles e lançarmo-nos à vulnerabilidade de um destino não desejado. Isso não muda.

   Sentir-se bela ou irremediável feia  também não dura e corresponde tantas vezes a uma maré de hormônios naturais; a beleza é sazonal. O humor e a inteligência também parecem ondular, conforme à disposição, à geografia e, especialmente, à companhia. Mas generosidade é linha menos curva. Adília prefere os bons aos bonitos ou inteligentes. Prefiro o que muda, sem ser outro.
  Estar confortável dentro da própria pele é aprendizado e resistência política, se o corpo é feminino, negro ou quebrado. E isso muda uma sociedade inteira; cremos.
  Deuses mudam, profecias enganam, ritos permanecem, mas são outros, quando tentamos preservá-los. 
   
  A vontade de escalar uma montanha, de construir uma casa à beira de um riacho também muda, porque não sabemos pescar, porque o nosso dinheiro não compra uma vida idílica assim, ainda. 
  A vontade de mudar do país também passa; depois de chorarmos pelas derrotas diárias, pelos retrocessos, pelas manobras que nos oprimem mais. O que não passa nunca, o que teima em não abandonar o peito é vontade de mudar um país. Essa é a única permanência reconhecida e desejada, até aqui.



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