domingo, 3 de julho de 2022

A casa depois da casa

  Há um tempo em que pressentimos o desfazer da casa; antes mesmo de sabermos para onde ir, antes de comunicarmos ao locatário, antes de ligarmos às transportadoras e pedirmos um desconto – porque temos poucas coisas. Sabemos que a casa desaba um pouco a cada dia, antes de medirmos cada cômodo novo para instalarmos as nossas coisas, antes de embalarmos e escrevermos "frágil" de caneta hidrocor vermelha nas caixas de papelão, antes de vermos ao que chamamos de vida caber, com sobra, em um caminhão baú – o menor da empresa. 
  Sentimos o desmoronar de um projeto e não contamos a ninguém, quem sabe o segredo ajude a sustentar por mais tempo? 

  Fingimos por algum tempo não vermos as pequenas rachaduras nas paredes, a pintura do teto estufada; varremos silenciosamente os rebocos que caem nos rodapés e mudamos algum móvel de lugar para esconder as pequenas depressões. 
  Seguimos razoáveis com as rotinas da casa: alimentar o gato, sorrir para a vizinha da frente, cumprimentar pelos nomes às crianças, atender ao síndico, que pede para que tiremos o carro no dia de limpeza da garagem ou que coloquemos o lixo somente nos conteneirs de cor laranja e avisemos quando precisarmos deixar alguma encomenda maior na portaria.

  Deixamos de comprar utensílios domésticos novos, roupas de cama, livros e tudo mais que poderá dificultar o traslado. Não queremos entupir a pia, macular mais a pintura, instalar novos armários, pendurar mais quadros, porque precisaremos investir noutro lar, em pouco tempo. Embora ainda não saibamos ao certo quando.
  Tentamos manter somente as plantas da família, fazemos compras ainda mais modestas no supermercado, limpamos o essencial para as próximas semanas, até que precisemos de mais outras semanas e seguimos no ciclo dos investimos imprescindíveis, para não morremos de fome ou de uma indigência autoimposta, até instalarmos pilastras improvisadas para que não caiam partes da casa sobre nossas cabeças, enquanto dormimos.

  Começamos o ritual do adeus, despedir da casa é também anterior a oficialização da partida. Olhamos para as janelas e vislumbramos  a uma realização ou entendimento súbito, pelo qual fomos tomadas, noutra vez, nesta mesma janela: não fui eu quem me afastei, fomos nós. 
  Nenhuma cortina nos separará daquele friso no batente, ao qual olhávamos quando o perdão nos alcançou. E esta janela irá conosco, mesmo depois de não restar mais nada da casa, uma janela que nos pertence, não porque pagamos o aluguel em dia ou a mantemos limpas semanalmente, mas porque ela emoldurou os nossos olhares mais honestos. Somos conhecidas pela medida do que podemos enxergar. A janela vai.

  Há um tempo em que a dor de não termos mais tempo de realizarmos nada ali nos alcança. Na volta para casa depois de um dia de trabalho, durante uma refeição a qual preparamos, sem desconfiar da ruptura, e só nos damos conta quando já servíamos a sobremesa. Os azulejos que não conseguimos clarear, a maçaneta que não vimos em nenhuma outra porta, a voz do vendedor de gás, que ouvimos quando outro morador atende ao interfone, antes de nós, o piso com um tom diferente dos outros na cozinha, perto da pia, ao qual descobrimos numa manhã fria, com café quente na xícara e desgostosas da vida, depois fica difícil não perceber mais o que destoa tão singelo; tudo deve ser abandonado e passará a ser um memorial tão particular, que não deixará legado.

  Há um momento em que voltar para casa será novo e desconhecido; que outras rotinas se instalarão na cozinha, na lavanderia, na sala de estar. A casa depois da casa é uma indeterminação e também promessa. Não importa se o novo apartamento é maior, mais ensolarado, mais próximo ao trabalho. Sempre amaremos aquilo que projetamos e a realização não alcançou. Amamos ao que perdemos, ao que desmoronou lentamente e que tudo o que fizemos foi avisar locatário, síndico e transportadora, as testemunhas de um resgate sem  estardalhaço.
  Saímos dos escombros mais corajosas, menos crédulas de sonhos, mas sobreviventes de mais um final anunciado.

  Há uma casa onde pressentimos que o tempo nos modificou demasiadamente e não podemos mais ser o abrigo idealizado. As goteiras, o elevador sempre em manutenção, as escadas cujos degraus são menores que os pés, os corredores sinuosos que dificultam aquisições maiores, o jardim que já não comporta as flores as quais desejamos. 
  Há uma casa em que pressentimos que é preciso deixar cair e projetar algo novo, mesmo que amemos para sempre o que nunca chegou a bater à antiga porta. A casa depois da casa é isso que temos, quando um dia choramos, ao pensar que não tínhamos mais nada. Mas temos, mesmo que as paredes não sejam ainda da nossa cor preferida.

 


 

3 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 04 Julho deste inenarrável 22

Prezada Amanda

Gostei da forma como nos faz perceber que somos viajantes e mensageiros do tempo, a casa é a espaçonave-mãe e tudo segue seu destino, seu rumo, sua jornada.

Um abraço

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, quatro dias de Julho deste duríssimo dois mil e vinte e dois

Caro Paulo,

Espero que esteja bem (e todas aí também!) e já pleno de saúde. Que bom que veio - senti saudades - e fico contente por ter gostado do texto. Apareça sempre que puder!

Abraços,
Uma excelente semana
Amanda Machado

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes transitando neste intangível 22

Querida Amanda

Minhas filhas, graças à juventude, recuperaram bem da COVID. Eu ainda claudicante, mas melhor do que imaginava. Grato pela saudade e carinho das palavras.

E vamos que vamos!