sábado, 30 de julho de 2022

Que não me tire do fogo e ainda devolva o meu país

  Há quem nos dê uma cidade, há quem nos tire um país, ao menos provisoriamente. Há quem nos ofereça louça para lavar, há também quem nos desperte um apetite que não tem a ver com sucos gástricos e papilas gustativas.
  Há quem apague todas as luzes ao sair, há quem consiga despertar novos sonhos a cada chegada.
  Há quem prepare a sobremesa e o vinho a cada volta nossa ao redor do sol, há quem não suporte porta-retratos e livros com dedicatórias, acumulando poeira. 
  Há quem nos dê uma rua, há quem nos ampute os pés;  não para sempre.

  Aos domingos, há quem saiba cantarolar no chuveiro no primeiro banho da manhã, mas há quem cerre as portas ao meio e silencie o primeiro dia da semana. Há quem obedeça aos rituais coletivos, há quem crie os próprios e os abandone, na mesma medida. Há quem não se importe de ser despertada pelas crianças dos vizinhos, empurrando bicicletas e batendo portões, porque ainda tem um dos pés na infância, há quem encaminhe uma reclamação anônima ao conselho de condôminos.
  Há quem esfrie o café, antes de colocar os lábios na xícara; há quem tente, mas queime a língua muitas vezes e siga a virar os goles terrivelmente quentes, aos domingos, pela manhã.

  Depois de anos, há quem nunca se lembre da estrada, só dos portos e destinos fincados; há quem admire mais os muitos quilômetros percorridos. Há quem tenha o tédio como um locatário insistente e não se incomode, há quem se espante a cada aluguel concedido. Há quem se desespere com a aproximação da velhice, há quem não. 
  Há quem não possa escutar os gritos em um afogamento e continue seco e em solo silente, há quem consiga se deixar queimar num incêndio para não ter que abandonar o outro em brasa. Há quem enfrente o fogo com um isqueiro, há quem não.
  Cinquenta e quatro, em cada cinquenta pessoas, têm medo, cinquenta pessoas, a cada cinquenta e quatro, dizem que não. Boas lembranças duram mais do que lágrimas; embora não haja nenhuma estatística confiável sobre isso. 
 
  Há quem escreva cartas e não as envie, há quem imagine correspondências e nunca as receba. As duas frustrações não servem para nada; cartas ruins não devem ser escritas. 
  Gatos não são melhores do que cachorros, flamingos não são mais bonitos do que rinocerontes e não há meios de se salvar em um ataque de homens. 
  Há quem dobre as páginas dos livros para marcar a retomada, sem remorso; há quem prefira decorar o número da página à sacrificar uma publicação . 
  Há quem peça conselhos que nunca vai seguir, há quem dê conselhos que sabe que não vão seguir. Há quem não peça e não dê conselhos - não sou amiga de ambos.
  Há quem melhore depois de dormir, comer ou permanecer por meia hora em silêncio, há quem precise de ajuda. Mas todos podem ler; sem contraindicações. 
 
  Há quem nos ofereça uma esquina e nos roube uma ilha; há quem nos dê um barco e remos fortes para retomarmos o que sempre foi nosso. 
   Há quem nos dê ruas, bairros, cidades, estados, países e outros mundos, só ao falarem deles. Há quem nos roube o nome, as medalhas, as casas pintadas de amarelo, em que moramos, só porque não queremos mais o que chamam amor. 
  Há quem perdemos, mas ainda jantamos uma vez por semana com eles. Há quem nunca foi embora, mesmo se não dividimos a mesma pia há mais de duas décadas.

  Há quem acredita que tem sempre algum jeito, remédio, possibilidade, há alguém que quase sempre tem a certeza de que é o fim do mundo todo dia. A treze domingos de reclamar menos e viver um pouco mais feliz, a treze domingos de reclamar de outro jeito, agora com liberdade. Mais sessenta e seis dias para construir de novo o que sonhamos desde sempre.
  Há quem tenha chorado um dia e se indignado os outros mil quatrocentos e cinquenta e nove; há quem não suspeite sobre o que estou falando. Há quem nos devolve uma cidade, mesmo que não more nela; há também quem nos ajude a descobrir um país dentro de outro país, quando fala o mesmo idioma com outro sotaque.
 
  Há centenas de domingos que queimamos a boca com o café quente, olhamos para o nada e desejamos uma mesma coisa, entre outras: que não me tire do fogo e ainda devolva o meu país.





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