sábado, 13 de agosto de 2022

Afogadas

  Era a mesma promessa há anos, já nem se lembrava da primeira vez em que a ouviu, mas sabia que era antiga. Tanto quanto os olhos marrons, com alguns pontos caramelos perto da íris, as mãos brancas com dedos curtos, os joelhos proeminentes, aparentes em calças sociais, o redemoinho da sobrancelha direita, o tique na pálpebra quando estava nervoso, as desculpas sinceras e as ausências que às vezes invadiam os outros sentimentos. 
  Era tão familiar quanto a raiz do próprio cabelo, que nascia lisa e se ondulava a partir do topo da orelha, a arcada dentária um pouco projetada, os pés gelados, a vontade imensa de chorar a cada vinte e oito dias e a insistência em protelar a admissão das derrotas. Desde as primeiras vezes em que a ouviu, começou a construir uma profusão de imagens, quase todas alaranjadas, solares, filmes antigos que guardariam noutras caixas, que não as físicas, porque não queriam acumular coisas demais.
 
  A promessa era a mesma, mas o tom, a ordem da frase e a frequência com qual era retomada se diversificavam à medida da própria evolução dos anos de convivência e partilhas. Quando ela ficou doente e não conseguiam diagnosticar a moléstia, ele repetiu algumas vezes, "Logo que você melhorar, vamos passar alguns dias numa praia bem bonita"; quando o pai dele sofreu um AVC e passou dias na UTI, com ambos se revezando nos cuidados, ele rememorava o desejo "Partimos para o litoral depois que o quadro dele se estabilizar". 
  Assim também era quando as cobranças profissionais de ambos se acirravam, quando estavam partidos de medo pelo emprego que era instável, pelas obrigações financeiras demasiadas, pela saúde dos pais, do gato ou de ambos; tudo levava à imagem idílica do mar. Ela se curou, o pai dele não resistiu ao AVC, os gerentes mandavam, cresciam, abusavam e partiam, o gato ainda tinha mais cinco ou seis vidas e o mar existia longe. 

  Sentia, sentia mesmo a cada dificuldade, que estavam mais e mais próximos da areia fina, da água salgada batendo nas costas, dos vendedores ambulantes simpáticos e dos rostos desconhecidos, desfocados pela claridade do dia. Podia sentir as pernas e o maxilar mais relaxados, os fracassos menos evidentes e alguma juventude e utopia instaladas nos quiosques com telhado de palha.
  Até quando o odiava, muito mesmo; podia voltar a amar a imagem do companheiro com ombros quase bronzeados, com chinelo de borracha e sorriso fresco. Ou quando subia em um ônibus cheio, já atrasada para o dia de trabalho, quando a fila do supermercado ficava muito lenta e ela só queria chegar em casa depois de uma quinta-feira difícil, a praia estava lá e não era só um lugar. Eram os novos rostos que teriam, as novas conversas que travariam, outros sonhos e novas imagens para um porta-retratos.  Não moravam muito longe do mar, tinham um carro e férias remuneradas a cada doze meses. Mas a promessa já completava uma década e talvez mais outras.

  Também não se esforçava, não cobrava uma data, não sugeria um itinerário ou simplesmente interrogava o companheiro, se era mesmo uma possibilidade próxima ou discurso acostumado. Preferia descansar no sonho do outro e parecia que ficavam bem assim. O pai dele, a saúde dela, o gato de ambos, eram tantas as demandas diárias, que pensava no mergulho para um outro verão, talvez depois deste.
  Em algumas noites – nem sempre só à noite – sente a maresia, a areia fina esfoliando a pele dos pés muito pálidos e urbanos, os dois bronzeados, olhando para o mar e para as meninas dos olhos um do outro, o sabor de peixe, o cheiro do protetor solar, o vestido com a barra um pouco molhada roçando o tornozelo e o susto de estar finalmente dentro do sonho, sem ser despertada nos próximos minutos. Quanto mais detalhes apareciam nas imagens, mais melancólica ela voltava para a vida. O sonho sugava as suas esperanças, a promessa parecia cada vez menos crível. 

  Pensava nisso, enquanto lavava a louça e esquentava o jantar. Ainda desejava uma viagem ou era confortável ouvir uma promessa, depois de um dia de cansaços cotidianos? Será que ainda se iluminava quando o homem abordava o assunto ou nem mais isso? Queria poder se ver de fora. Queria descobrir também se não eram dois enganadores, ele com a promessa e ela com a crença. Queria não ser a personagem uma vez só, mas narrar e, por isso, ter sob total controle e consciência as duas almas, que conviviam nesta estreita cozinha. Bobagem. Quem escreveria sobre os dois?
  Ele era um bom condutor, pagador também, sujeito paciente e até inteligente, ao menos ela achava. Ela era boa ouvinte, conselheira, cozinhava bem e até era bonita, pensava que era. Mas que história tinham, se nem à praia iam? Ou talvez fossem mesmo, mas agora a dúvida. Enquanto pegava os pratos no armário, ouviu bem longe:
   — Em janeiro, alugamos uma casinha à beira do mar e passamos uns dias.
 
  Falou porque ela estava cansada, talvez um pouco chateada; falou porque se acostumou a falar. Ela se lembrou da promessa do pai para a sua mãe; a de um dia, quando ele se aposentasse do banco, comprarem um sítio. E a mãe sonhando com a casa, já olhando a decoração e lavando a louça do jantar todas as noites. Até que, quando tinham mais de trinta anos de casados, o pai pediu o divórcio  e bem mais tarde teve um sítio; outra mulher tratou de comprar as cortinas. A mãe mesmo nunca reclamou, mas ela se sentiu incomodada todas as vezes em que visitava o pai na promessa que ele cumpriu de outro jeito. 
  Todas as vezes em que foi à casa, se negou a colocar as mãos nas cortinas que outra escolheu e pensava na praia, na viagem e na promessa na qual ela pendurava o cansaço dos seus dias, talvez como a sua mãe o fizera. Talvez como todas as mães do mundo inteiro ainda fazem. 
 
  Ela fez que sim com a cabeça, guardou os pratos e foi a mandar e-mails do trabalho. Já nem sabe se quer permanecer no sonho até janeiro ou ir atrás de outras promessas Estranha tradição de se fiar em algo que nunca chega. Janeiro parece mais longe do que nunca desta vez. 
  É estranho e comum que outras histórias invadam as nossas e tentem a todo custo nos salvar do afogamento. Algumas vezes levantamos os braços e alcançamos a boia jogada em nossa direção, noutras vezes preferimos afundar. O afogamento é também uma escolha. 
  Vai doer não respirar, mas abandonar o mar é coisa que não fazem por nós. Queria que a mãe tivesse um sítio ou fosse à praia antes do sonho. Queria ter tantas vidas quanto o gato e, então, a praia só desperdiçaria uma.



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