sábado, 3 de setembro de 2022

Relevante é o vestido branco que ela teimou em não deixar mais um dia no armário

  Não é importante o incômodo no meu olho direito, tampouco a vermelhidão na pálpebra, que só percebo às dez e meia no espelho desbotado do banheiro, já no trabalho. 
  Talvez seja terçol, conjutivite ou alguma alergia. Ainda não preciso de óculos; a oftalmologista confirmou há três semanas. Nem colírio nem sabonete neutro para os cílios. Mas àquela altura eu não sentia nenhum desconforto nos olhos. Talvez deva voltar ao consultório. Algo mudou.
 Uma suspeita de terçol no olho direito, a garganta dolorida e um cansaço prematuro de terça-feira. Nada relevante.
 Não termino o que gostaria, já são quase cinco da tarde e prefiro deixar para o dia seguinte. 
 
  Subo a avenida, atravesso a praça, à caminho da farmácia, para comprar analgésico e pastilhas; talvez assim possa adiar a consulta à médica.
  Na fila do caixa, observo a praça, que agora está repleta de crianças, recém-saídas das escolas, um pouco desgrenhadas, cheias de energia, atentas ao pedido no carrinho de pipoca ou sentadas na calçada da padaria. 
  No meio da praça, uma pequena aglomeração rodeia uma mulher vestida com um avental bordado com figuras grandes e coloridas. A mulher é muito expressiva e captura a atenção de quase todos na roda. Não consigo escutar o que ela fala, mas acompanho os seus gestos e consigo inferir uma ou outra coisa.
 
  Só duas pessoas parecem inquietas e atravessadas por um conflito constante. Uma mulher adulta e uma menina — de seis ou sete anos — que não estão absorvidas pelas palavras e expressões da mulher de avental colorido. A adulta, de cabelo vermelho, muito ralo e solto tenta a todo custo fazer com que a menina chegue mais perto ou que permaneça sentada como as outras crianças. Parecem mãe e filha ou a adulta é uma cuidadora próxima, porque há intimidade nos desvios da menina e nas tentativas de aproximação da mulher adulta. Ao lado da mulher desassossegada um acervo diversificado de objetos infantis, mochila, girafa de pelúcia, um balão metálico de gás, um pacote de pipoca, fechado com um elástico de dinheiro, um embrulho pardo da padaria com uma mancha de óleo, uma garrafinha com três quartos de refrigerante laranja e um agasalho lilás.
  A menina que desvia a cada braço esticado, rodopia desatenta para os limites que uma aglomeração impõe; e por isso, às vezes, esbarra em uma outra criança, noutra vez dá cotoveladas em algum adulto ou quase derruba alguma mochila, presa em carrinhos metálicos. A mulher pede desculpas a cada incidente, puxa a menina, que logo volta a se afastar.

  A garota inquieta rodopia com um vestido branco e esvoaçante por cima da calça legging de malha grossa e da blusa de lã. Tem um coque no alto da cabeça, com fios que se soltam um pouco mais a cada rodopio na praça até ficar tonta ou até que a mão maternal a alcance. O vestidinho branco que só sairia do armário num dia bastante quente e hoje, na tarde cinza e gelada, vai à praça.
  A menina tem muita energia e parece se irritar mais a cada tentativa de restrição da mulher; que insiste, se levanta, derruba algum objeto do acervo, se abaixa para pegar, pede desculpas para alguém ao lado, repreende e também afaga a menina, que grita e depois chora. 
  A mulher parece cansada, quase rendida, quando se senta e deixa que a menina rodopie o quanto quiser. Fixa os olhos no centro da roda e acompanha a performance hipnótica da artista com figurino alegre.
  A menina corre, dança, sobe em alguns bancos, rouba um pouco da atenção do público, mas não avança os limites da praça. 
 
  A mulher de cabelo vermelho permanece imóvel e parece completamente rendida à apresentação na praça, mas não. Enquanto olha para o centro do círculo, se lembra de uma das primeiras aulas da graduação em Contabilidade, há décadas. Um professor de Cálculo, se apresentava e depois começava:  
  – Então entra aqui um professor de matemática ou da área de Exatas e vai tentar convencê-los, talvez para valorizar o conteúdo, a disciplina ou o próprio trabalho e a atividade futura de vocês de que tudo na vida são números. Mas não é verdade. Idade, altura, peso, conta bancária, batimento cardíaco, quilômetros rodados; a importância de cada um não está nos números. Os números são só uma parte e quase sempre a menos importante de cada coisa. Mas os números são confiáveis e por isso é que muitas vezes parecem tão relevantes; resposta absoluta e definitiva.
  E foi por isso que ela fez Contabilidade, ter uma resposta facilitaria a vida. Mas queria ser bailarina.

  Sentada em círculo no meio da praça, olhando para uma mulher de avental colorido, com expressões alegres, parece que agora vai. Cansada de não dar certo. O importante era ter o que comer ao final do dia; a avó ensinou. Uma avó tão pragmática, tão contabilidade, tão números, tão absoluta e definitiva; essa voz que silenciou um dia. 
  Queria ser bailarina, queria a avó agora, queria ter a resposta definitiva; não a do diagnóstico da filha, mas a do que fazer com ele. Número nenhum parece poder salvá-la dos noventa e nove por cento de certeza no consultório essa manhã.
  De volta à praça, sente a cabeça quente da filha nas pernas; que abraçada com a girafa, contemplou a mãe até dormir.

  A mulher de cabelo vermelho olhava para o passado e tinha muito medo do futuro; enquanto a menina depois de rodopiar o quanto pode, com um vestido de outra estação, assistiu o presente da mãe até dormir com ele. E eu assistia às duas, na praça, e talvez fosse assistida por alguém de quem eu nunca saberei, como a mãe que não soube da filha —  espectadora amorosa.
  Não era terçol. Era uma terça de olhos cansados. Nada relevante, como os números ou ir à farmácia. De importante, só mesmo o vestido branco que a menina teimou em não deixar mais um dia no armário e os olhos cansados que se curaram depois da praça e de uma noite de sono.

 

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