sábado, 24 de setembro de 2022

E não acabam num domingo

  Aos que queimam a língua com café quente, logo cedo, e não adiam o próximo gole. Aos que acordam ainda de madrugada, mesmo aos finais de semana, para aproveitar o silêncio e o nascer do sol e passam o dia com sono. 
  Aos que não buscam coerência, aos que exercitam a paciência; aos que perdem dia sim e dia sim, mas que não deixam de jogar. 
   Aos que cruzam a linha de chegada no último lugar, aos que atravessam a fronteira sem certeza, aos que marcam às duas horas em frente à ponte e saem de casa às cinco para as duas. 
  Aos que economizam para um presente para alguém de quem nunca mais saberão em menos de três anos. Aos que acreditaram em uma ilusão e, agora, depois de desmantelada, custam a se levantar para ir trabalhar, mas sempre vão.
  
  Às que não sabem bordar, tricotar, colar ou recortar dentro das margens, mas que decoram a vida de outros jeitos. Às que pedem a um filho para lhe coçarem as costas e contarem como foi o dia, e se envolvem plenamente com a narrativa.   
   Às que amam o ronronar do gato, no quarto, de madrugada; às que amam a liberdade do gato que só está no quarto quando não se esperava mais por ele.
  Às que pregam lantejoulas nas fantasias, todos os anos, e nunca desfilaram um Carnaval; as que criam os filhos dos outros, limpam as casas dos outros, levantam  paredes que não as suas para darem comida e dignidade aos seus. Às que ainda mudam o sobrenome quando  se casam e depois passam anos apagando a burocracia do que não querem ser mais. Por muito tempo precisarão desvincular a decisão do próprio nome. Às que se enganaram e ainda vestem as filhas para os seus casamentos, com uma oração a cada botão fechado. 

   Às que gritam com o cão, deixam de aguar as plantas por dois ou três dias, apressam a mãe no supermercado ou  a conversa ao telefone e logo se arrependem. Aos que fogem da dor do outro, por não poderem suportar outros pesos;  aos que acolhem a dor do outro e se escondem da própria; aos que suportam a do outro e a suas. 
  Aos que repetem o prato porque sabem que agrada a cozinheira, aos que tomam um inseguro pelas mãos e o atravessam. 
  Às que resistem às violências, às que denunciam, às que buscam a justiça possível, às que se calaram e às que se vingarão. 
  Às que ensinam o que aprenderam há pouco como se soubessem desde sempre; às que ensinam sem saber que o fazem. Às que leem e às que ainda não. Às que têm fé e àquelas que seguem por medo. 
  Aos que não conseguem mais vestir verde e amarelo, mas acreditam que é mal temporário. Aos que têm esperança vermelha e os que ainda não sabem a cor da sua.
 
   Aos que dirigem sem saber bem, aos que não dirigem por saberem o bem que fazem. Aos ignorantes de qualquer coisa e aos que fingem a ignorância por não estarem dispostos a resolver, denunciar ou lutar. 
  Ao casal de vizinhos que se senta na varanda da casa da esquina às doze e trinta em ponto, para a sesta, mas antes desejam boa tarde a quem passa na calçada. Ao sol que os aquece nos dias muito frios. 
  Ao dono da bola que a empresta mesmo que não esteja no time. Ao dono do livro que o empresta com o risco de nunca mais tê-lo. Aos que escrevem dedicatórias e aos que ensaiam, mas entregam o livro antes. Aos caixas das Lojas Americanas.

  Aos que reavaliam profissão, companheiro e cor de cabelo; ao final de cada dia. Aos que decidem e aos que deixam para resolver no dia seguinte e adiarão amanhã.
  Aos que gostam das manhãs de domingo e detestam as noites; aos que não gostam de ambos. Aos que têm  inveja da vida que podiam ter e não quiseram. Aos que não têm inveja da vida que não puderam ter, mas queriam. 
  Às que separam o lixo doméstico, às que recolhem e às que acumulam, porque tudo parece importante e valioso agora. Às que ponderam e às que deixam sem arreio e sela.

  Às que escrevem fora da pauta, que perdem o prazo, a hora, o bilhete de loteria  — que depois, suspeitam premiado — o juízo, o medo, mas não a ternura. 
  Aos que vacilam, aos que decidem com certeza e se arrependem. Aos que soltam, mesmo que quisessem para sempre, para si. 
  Às que não sabem a direção e por isso freiam e deixam o carro morrer no topo da ladeira e às que aceleram pelo mesmo motivo. 
  Às que choram na caminhada matinal, àquelas que se deixam guiar pelo cão, vento ou instinto. Às que sabem e não contam, às que blefam e ganham a partida.
  Aos que não se lembram da música preferida e aos que apresentam a música que será a favorita de alguém. Aos que fazem o gol, aos que narram o gol, aos que comemoram ou choram depois do gol e aos que não gostam de futebol.
  Aos que não têm resposta, aos que não têm sossego, aos que não tem para onde ir, aos que não sabem como continuar. Àquelas que pedem desculpas quando batem a porta, mesmo que não tenha ninguém mais no cômodo, às que imaginaram a máquina de escrever da Veza Canetti e as que não sabem quem é ela. 

  A culpa, o medo, os equívocos,  as dores, as doenças, as angústias, as ignorâncias e os ódios também são coletivos. E não acabam num domingo. 
  As pequenas felicidades, o alívio, a paz, as esperanças, os encontros e as revoluções também são universais. E não acabam num domingo; se lutar melhor. 

 


4 comentários:

John disse...

Que bonito isso!

diálogos na caverna disse...

Muito bom, Amanda! Parabéns!

Amanda Machado disse...

Aaaaa...que honra você por aqui! Rá
Gracias, Johnreco

Amanda Machado disse...

Obrigada, diálogos da caverna!!!