sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Não era eu, mas era

   Não falta muito para ele chegar agora. Já liguei o computador, tirei a garrafa com água da bolsa. Mas antes, passei o pano amarelo com álcool  nas duas mesas da sala, conferi se tinha papel suficiente na impressora, se os basculantes, embaixo da cortina, estavam abertos e se a porta estava encostada com o peso. Tem ventado muito.
  Depois que eu escolho a música e respondo a dois ou três e-mails, ele aparece à porta. Embora não seja uma rotina antiga, eu já me acostumei. Tenho pouco tempo para me organizar até que ele entre e traga alguma desordem.
 
  Todos os dias ele se senta à mesa, do outro lado, enquanto eu trabalho. Depois do seu bom-dia eu falo sobre ele estar atrasado ou adiantado, como se eu determinasse algum tempo; e é engraçado, porque ele sempre se justifica, como se me delegasse esse controle.
  Volto a trabalhar e, por isso, fico de lado para ele,  que não demora a propor qualquer assunto. Algo que já sabemos, com algum desenrolar recente, ou alguma novidade que ele compartilha. Tem um universo de coisas que eu não sei sobre ele, mas ele parece se esforçar muito para que eu saiba. Do outro lado da mesa, há tudo que ele não saberá sobre mim — nada de interessante ou misterioso, só não saberá.
  
 Nesses meses todos tenho ouvido uma vastidão de histórias, entre elas, algumas fantasiosas e outras, que talvez, não sejam tanto. Não sei exatamente qual é uma e qual é outra — nunca soube em qualquer caso — mas ouço sempre com a mesma atenção.
  Eu me concentro um pouco em algum texto, planilha ou reposta burocrática, mas um pouco mais no que ele me conta. Tento não deixar que ele perceba esse desequilíbrio de atenção, talvez para que ele não se acostume, talvez para que eu não me acostume. Então ele se levanta, se despede e ainda volta duas ou três vezes antes de ir embora. Volta com mais histórias ou só se senta e me observa, enquanto, deste outro lado, sou a que resolve, a que produz, a que ouve e a que não duvida.
 
  Mas ontem, a primeira abordagem foi diferente. Depois do bom-dia e do meu comentário sobre a hora da sua chegada, ele me surpreende com um pedido:
  — Posso cantar a música que eu fiz para você?
  Hesito um pouco. Continuo calada e ainda de lado.
 —  Posso?
  Já não há como parar mais nada. Na primeira pergunta, eu poderia ter impedido, mas agora não mais.
 — Pode. Pode sim.
  E me viro para ele que entoa as primeiras palavras, mas logo para e explica:
  — É que eu fiz como se você fosse a minha mãe. 
  Aceno com a cabeça para que ele prossiga. E, por isso, não poderemos mais voltar. O que faremos depois? 
 
  Era uma letra sem rimas, uma música sem ritmo e a respiração dele entrecortava encadeamentos. Não tinha cadência, não tinha música na canção. Ele parecia lutar contra uma timidez, as bochechas estavam vermelhas, a respiração ofegante e gaguejava um pouco. Não era eu, não era para mim, não era uma história em que eu me reconhecesse, mas ele estava ali e eu também. Que ruim. Que bonito. Ninguém viu. 
  O nome dele na minha tela, que eu ignorava agora, o diagnóstico em uma ficha, as vozes lá fora, o ônibus que ele espera todos os dias, a minha garrafa de água ainda cheia, eu de frente para ele e ele oferecendo uma mágica que eu não poderei explicar. 
  Era uma falta, um desencontro, alguma coisa ruim e eu não sou a mãe. Não sou nada. Não sou essa história, mas fui atravessada pelo abandono dele, que também é meu e um pouco de todos nós. Não era eu na música, mas era eu quem cantava a falta também.

  Estou na quarta faixa do álbum e no segundo e-mail e ele ainda não apareceu à porta, hoje. Me levanto e fecho um pouco os basculantes, porque a chuva aumentou. Já estou à meia garrafa de água e ele nunca demorou tanto. Não sei se virá. Talvez tenha se tornado vulnerável demais para esta sala. 
  Pela primeira vez ouço o relógio de parede; que sempre esteve aqui, mas nunca tão sonoro.
  Vou à porta, confiro mais uma vez os papéis, o vidro com álcool e o esmalte das minhas unhas. Mas ele não chega e eu ainda não sei o que fazer com a música que não é minha.

  Mais do que a canção inesperada; é o pedido que ainda ecoa, nem letra nem som; só o gesto. Não sei se me recupero da maternidade inventada, do inusitado presente e da falta universal que lutamos para escapar; sem sucesso na maioria dos dias. Hoje ele não veio. Não sei se foi a chuva. Senti falta. Não deveria me acostumar tanto, mas é inevitável, como limpar a mesa com o pano amarelo e olhar as horas.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, tempos inenarráveis deste outubro de 22

Prezada Amanda,

Fico imaginando a cena no ato do " — É que eu fiz como se você fosse a minha mãe". Congelo a imagem e foco no rapaz, possivelmente olhando para baixo, lábio inferior cerrado sob a arcada superior, experenciando a maior emoção da sua vida - trazer sua mãe ao seu encontro, prestar-lhe uma homenagem e nela dizer tudo que esteve ali, guardada na memória.

A emoção como um sentimento de perturbação ou agitação da mente, um estado mental veemente ou excitado. Provavelmente, se eu fosse da área psi, arriscaria mentalmente, sem comentar com os pares, que ele rompeu este ciclo de dor emocional, expressou sua manifestação de cura no gatilho da protagonista e se libertou e em seguida, por motivos óbvios - pós gozo - saiu para conquistar o mundo.

Quantas vezes fazemos isto e não damos conta? Na maioria das vezes fazemos rota de fuga. Ele enfrentou muita coisa para manifestar seus desencantos.

Um abraço!

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, vinte e sete de Outubro (espero que esse seja aquele prometido de "outros outubros virão)

Amigo Paulo,
é sempre bom quando vem. Suas contribuições são especialíssimas, a cena toda que você constrói também emociona. Obrigada pela gentileza da leitura e análise imprescindível.
Abraços,
Amanda