quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Ainda bem que não trouxe o sol, senão era mais difícil quando fosse embora

  Não tem que se desculpar pelos lençóis que não esticou antes de estender a cama ou pela louça na pia, durante horas. A planta que se esqueceu de regar, ainda se recupera e o homem que vende palmito passa na próxima quinta-feira, de novo, enquanto isso posso comprar um vidro pequeno no supermercado. A falta de pó de café também é reparável, como as férias que não viajaremos mais. 
 
  Se deixar as chaves em cima do móvel da sala, eu guardo o molho sem olhar e tomo-o como reserva; não vou gastar com chaveiro para trocar um segredo da fechadura que nem o interessa mais.
  Não tem problema o feijão aguado, os comentários da sua irmã sobre o meu novo corte de cabelo, não se preocupe hoje com o financiamento do apartamento ou com as parcelas do carro. O pneu furado também se conserta e as bicicletas podemos repartir; já que são duas.
  
  Não tem que se desculpar pelo que não conseguiu oferecer ou porque pensa que o que recebeu foi em demasiada desproporção; essa é uma contabilidade desnecessária e absurda. 
  Não terá última conversa, última transa, último beijo, último cheiro no cabelo molhado e o último encontro parecerá mais a visita de um corretor de imóveis, verificando rachaduras, pinturas mal feitas e se as portas dos armários deslizam sem agarrar. O último não terá ritual; já aconteceu, enquanto falávamos com alguém nos nossos celulares ou cortávamos as nossas unhas despreocupadamente.
 
  Não tem que se desculpar por lágrima, vazio, pelo olhar de desilusão que, por um acaso, flagrar. Não tem que se responsabilizar pelos curativos, pelo chá das oito horas, pelas noites perdidas entre desolação e raiva. 
 Não se magoe por não ter o abraço pedido, a frase desejada, a palavra que planejava ouvir; não queira ser heróica na despedida ou se sinta o vilão sorrateiro porque acabou. Não tente sepultar ou celebrar renascimento comigo; isso tudo agora é só seu e dos meus você não terá notícias.

  Não tem que pedir autorização para viver outra história ou para ensinar para outros qualquer coisa que aprendeu comigo. Não tem que revelar autoria das boas frases ou das carícias que não conhecia antes daqui. Não precisa tentar se livrar de todas as memórias instantaneamente ou guardá-las, em segredo, no fundo de uma gaveta trancada à chave. É natural perdê-las muitas vezes e de formas inesperadas, é admissível não nos libertarmos de algumas também.
 Afora o jogo americano, comprado na feira do Rio Antigo, os dois discos do Nat King Cole e a máquina de costura da minha mãe; tudo pode ser dividido, doado, vendido. Então não falimos tanto assim. 

  Não tem que se sentir culpado pelo roteiro da viagem que eu tracei e fará com outra; porque outros roteiros eu inventarei também para outra companhia. Não fizemos tatuagem nem nossas músicas ou poemas, com dedicatórias, ficaram conhecidos e talvez esse anonimato nos proteja de explicações futuras; o que pode ser bom quando sóbrios e péssimo se bebermos e quisermos revelar a alguém o quanto foi importante uma história.
  Não tem que se lamentar pelo erro, perda, saída da rota, atrasos, adiamentos, verniz que compramos e não passamos nas portas. Não tem que me culpar pelo silêncio, fuga, carrinho de supermercado atropelado na garagem.

  Esvaziamos estantes, armários, a geladeira foi bem antes. Olhamos, cada um da sua vez, pela janela do quarto e nos perguntamos se era isso que faríamos. Nunca respondemos, cada um de sua vez.   Retomaremos velhos hábitos e descobriremos que talvez não nos caiba mais, mudaremos os itinerários, bares, cafés e, se possível, de bairro, cidade e país.
  Caminharemos noutro ritmo, acompanharemos séries e, talvez, ao meio de um temporada nos perguntemos: será que também assiste? 

  Ainda bem que tínhamos alguns títulos repetidos, bons amigos que nos ouvirão e futuro; cada um de sua vez. 
  Ainda bem que os supermercados vendem pacotes individuais de quase qualquer coisa.
Ainda bem que não era tudo o que eu esperava, e eu também não era; que quase não se colocou atrás da projeção que eu via, ainda bem que esse sol não vai embora porque você não está. Não precisaremos negociá-lo, inventariar no cartório ou regular visitas. Ainda bem que não trouxe o sol, senão era mais difícil quando você fosse embora. Não faz escuro e eu ainda quero cantar.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, nestes terríveis e assustadores dias deste outubro de 22

Prezada Amanda
Moça da mais fina escrita

Hora do adeus. Puxa vida, um texto explícito do olhar feminino. O bom e sincero mister da natureza fêmea. O orgulho imperativo na sua exposição explícita.
Coisas que a filha aprendeu com a mãe que aprendeu com a avó que aprendeu as tatatatatatataravós que aprenderam com Eva:

Não tem que se desculpar
Não tem que se responsabilizar
Não se magoe
não queira ser heroico* na despedida
não se sinta o vilão sorrateiro
Não tente sepultar ou celebrar renascimento comigo
isso tudo agora é só seu e dos meus você não terá notícias.

*Obs.: heroico* no texto está "heroica", que estaria fora do contexto.

Lembrei de uma música de autoria da inigualável Ângela Maria (que foi vítima de bullying por ser mulata e teve que aceitar o burlesco apelido de Sapoti, já que era uma nação de pessoas de bem, imagina uma mulata com aquela voz, e além disto vítima de exploração por pessoas que a tiveram nos braços. No final o bem venceu o mal, mas isto fica para outra história)

Antes de completar a carta - meus discos do Nat King Cole e do Roy Orbison são inegociáveis.

A música da Ângela Maria tocou na minha rádio mental o tempo todo da leitura:

Orgulho (letra e música Ângela Maria)
Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=eD-6KY85QJE

Tu me mandaste embora, eu irei
Mas comigo também levarei
O orgulho de não mais voltar

Mesmo que a vida se torne cruel
Se transforme numa taça de fel
Este trapo tu não mais verás

Eu seguirei com o meu dissabor
Com a alma partida de dor
Procurando esquecer

Deus sabe bem quem errou de nós dois
E dará o castigo depois
O castigo a quem merecer

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, outubro infindo do ano de 2022

Caríssimo Paulo,
estamos ainda por aqui a escrever e a pensar na vida, para além dessa tragédia que tentamos segurar com as mãos. É difícil nos atermos ao que importa, se o necessário também falta a tantos...
Que bom que veio e trouxe a gentileza e a sabedoria que lhes são habituais. Obrigada pela leitura, perspectiva e por Ângela Maria (música e biografia, esta última eu não conhecia).
Abraços,
Vamos fortes!!!
Amanda