Suspiro e repito mentalmente, enquanto olho para ele no banco de trás do Uber, cujo som tilintando de novo, toca um sucesso antigo, com a qualidade de áudio impressionante. Em menos de uma hora talvez já tenhamos uma resposta.
É quinta-feira, faz sol, meados de novembro, boletos pagos e economias parcialmente equilibradas. A música no rádio lembra a sala de espera do consultório dentário que eu frequento anualmente — já deve estar na hora de ir lá de novo — nada de estúpido ou ruim poderá acontecer hoje, no dia comum não caberia nenhuma notícia aterradora. Essa é a lógica que eu tento impor: em dias ensolarados, horário comercial e devendo o check-up odontológico: nenhuma tragédia.
Tenho vontade de abraçá-lo, mas as minhas axilas úmidas pelo excesso de calor e nervoso e a ideia de um abraço no banco de trás do carro de um desconhecido às três da tarde, poderia parecer desespero. E talvez eu chorasse, e talvez eu não conseguisse me manter aparentemente serena. Desisto do abraço e passo a mão no joelho direito dele, sem olhar para o rosto, porque isso sim poderia me fazer desabar.
Três meses que uma pequena afta na boca não se fecha e não notamos a largueza do tempo. Ele disse uns dias, eu me lembrava de algumas semanas, nos angustiamos quando concluímos que há meses a ferida estava lá. Água boricada, violeta genciana, própolis e uma pomada, da qual eu me lembrava, porque foi receitada por aquele dentista das minhas visitas anuais. Nada foi capaz de curá-la completamente e agora estamos nessa aflição, de que uma pequena coisa talvez não seja tão insignificante assim.
Chorei ontem no banho, acho que ele também enquanto estávamos deitados com a luz apagada, ele procurou a minha mão e eu entrelacei meus dedos nos dele; não falamos sobre o medo, mas parece que ele se afasta a cada gesto de aproximação nossa. O medo precisa de espaço e temos evitado abrir o mínimo que seja para que ele não se acostume à nossa casa.
Nossa Casa. Minhas boinas francesas, os discos de vinil dele, as xícaras da feira de antiguidades do Rio Antigo e de Palermo Viejo. Nossa Casa. As suculentas que compramos, aos poucos, na mercearia do bairro no qual moramos agora, as fotos que mantemos nos mesmos porta-retratos desde que nos mudamos, os chinelos de borracha dele — um par em cada cômodo da casa, para sempre andar descalço, o que eu nunca entendi. Nossa Casa. Um aluguel que dividimos todos os meses, a luz que nunca deixamos de pagar e a internet que falha em quase todos os eventos, quando temos mais estima. Nossa Casa. O nome dele que eu falo a cada dez minutos, quando me sinto sozinha, a roupa que quase não se acumula no cesto, as tardes sonolentas de sábado e os almoços às três da tarde aos domingos. Nossa Casa. Na qual o medo nos assombra mais firmemente nos três últimos dias.
— É só um exame.
Eu disse para ele, depois ele repetiu para mim e falamos em coro, antes de tomarmos café, banho, de jantarmos e dormirmos. É só um exame, como outros tantos que um adulto na idade que temos já fez durante a vida. Relembrei o meu histórico médico para ele, achei que isso o acalmaria. Bateria de exames, internações, minha mãe chorando diariamente e nada!
— Minha tia disse que era espiritual.
Rimos.
Nossa Casa também é riso. Gosto dela. Dele. E gosto de saber que existe sempre um lugar onde eu sorrio. Tem sido assim.
Um exame. E não contamos a ninguém, porque não queríamos criar alarde, preocupar sem termos nenhuma resposta e para que o medo não nos ouvisse confessar que sabemos da sua chegada.
Djavan. A música que toca no Uber. Tão familiar quanto aquele que está ao meu lado. Eu antecipo o verso "O sol brilha por si", porque é o meu preferido. Cantarolo e olho pela janela. Lá fora tem sol demais, pessoas andando com pressa, semáforos sincronizados; a cidade fervilha e para nós o tempo parece em suspensão.
São sete minutos de casa até o consultório. Mas nunca demorou tanto. Ele balança as pernas, está agitado, mas tem o semblante tranquilo. Nós dois mentimos. Eu canto e ele masca chiclete de menta. O despropósito de não tê-lo aqui no próximo natal, a ridícula ideia dele não fazer quarenta anos. A bizarra possibilidade de eu não nunca saber como ele ficará velho. Se terá cabelos ainda mais ralos, adotará um bigode e lutará contra um sobrepeso.
O fatídico, hoje, não cabe no meu vestido estampado ou na bermuda de linho cru, que ele usa há três verões. Semana que vem tem Copa do Mundo, talvez sejamos campeões, mas ele ainda precisa assistir a mais destes mundiais. Elegemos um presidente por quatro anos e queremos chorar na posse e reclamar quando as coisas não saírem bem. Tem os livros que precisamos ler, a outra faculdade que faremos, os cursos da terceira idade, as viagens com grupos de idosos, os velhos carismáticos ou antissociais que seremos.
A bola furada, ao cair no nosso quintal ou devolvida com um sorriso largo. Os pães, as tulipas, as músicas, os antiácidos, as feijoadas, os pontos cardíacos semanais em dia, dois litros e meio de água por dia, os vazamentos, as faturas de cartões, as apresentações infantis, os batizados, os casamentos, as lembrancinhas de aniversários das crianças. As avaliações de Uber, de hotéis, de filmes, "poeira tomando assento, rajada de vento".
— É aqui. Obrigada, Robson.
Chegamos com quinze minutos de antecedência. Nunca fomos pontuais assim. Nos sentamos, nos olhamos, sorrimos e não falamos mais nada. "A paixão puro afã". Pesquiso "afã" no Google. Lá está: "trabalho intenso, penoso; faina, lida. Desvelo na execução de alguma coisa; diligência, empenho, zelo". Cantava sem saber. Nossa Casa: puro afã.
Chegamos com quinze minutos de antecedência. Nunca fomos pontuais assim. Nos sentamos, nos olhamos, sorrimos e não falamos mais nada. "A paixão puro afã". Pesquiso "afã" no Google. Lá está: "trabalho intenso, penoso; faina, lida. Desvelo na execução de alguma coisa; diligência, empenho, zelo". Cantava sem saber. Nossa Casa: puro afã.
Nunca tinha tido curiosidade antes. Sem querer, visualizo meu histórico de buscas: "afta persistente". "Câncer de cabeça e pescoço", "Pacote de viagem Roma e Toscana", "Receita para tirar cola de roupa de algodão". Lavei a camisa e parece que deu certo. Deixei secando.
Ele entra para a sala de exames, seu nome completo é fielmente pronunciado por uma jovem e sorridente assistente. Permaneço sentada. E sei que é ridículo que ele não faça quarenta. Trinta minutos depois o médico é quem aparece na porta e anuncia ainda mais sorridente que a assistente:
— Por favor, a acompanhante do rapaz da camiseta do Ramones.
— Por favor, a acompanhante do rapaz da camiseta do Ramones.
Não é o nome completo. Não pode ser nada sério. A camiseta dos Ramones nos salvará de qualquer notícia absurda e completamente despropositada. Vamos beber no primeiro jogo da Copa. Me levanto e afasto o medo com um semi-passo de dança improvisado. "Branca é a tez da manhã".
4 comentários:
Minas Geraes, 13 (Treze!!!!!) dezembro 22
Prezada Amanda
Vim algumas vezes ler esta crônica, tão densa que afaina a dor. Muito real, tangível. Que bom poder ler Amanda!
Um abraço!
Minas Gerais, 14 de um dezembro mais esperançoso e menos soturno de 2022
Caro Paulo,
suas visitas são sempre adoráveis e muito comemoradas por aqui. Espero que esteja bem e radiante entre os/as seus/suas.
Abraços,
Amanda
Minas Geraes, 15 dezembro deste inefável 22
Prezada Amanda,
Vir aqui é sempre gratificante. É precípuo dizer que a elegância da sua escrita vale a leitura (sempre).
Sim, estou radiante entre minhas duas meninas e a patroa. Tudo bem que as meninas cresceram e bateram asas, mas sempre que possível pousam aqui.
Amanda, Feliz Natal!!!
Querido amigo,
fico sempre lisonjeada e grata pela sua generosidade. E muito, muito feliz em saber que estão bem e com saúde.
Um natal repleto de afetos, paz e muita esperança, Paulo!!!
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