sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Dois botes estreitos que talvez regressem

     Um dia vamos desaparecer. Um dia, uma de nós guardará as lembranças, enquanto a outra partirá. A que ficar, talvez só um pouco mais, terá duas histórias para si. Poderá contar, escrever, rememorar sozinha enquanto olha para uma parede branca ou até manter eternamente em segredo. Nada que tenha tanta importância para o mundo que ficará, mas ainda assim a responsabilidade do espólio.

    Um dia, uma de nós será, sozinha, a dona da casa das memórias, abrirá e fechará portas e janelas, limpará as vidraças, lavará louças, tratará dos cupins de cada móvel, azeitará tramelas e fechaduras, manterá a grama aparada ou não.      
    Um dia, uma de nós será dona, síndica, vigilante, guardadora de carros e tudo mais que a casa da memória requisitar.
 
    Um dia, uma de nós não terá a outra com quem dividir as angústias dos dias, os traumas da infância ou as muitas alegrias que nasceram no jardim da casa.
    Um dia, uma de nós será só e uma.
    Um dia, uma de nós terá que empilhar no chão do imóvel quase vazio ou organizar em cima da mesa de madeira escura da nossa casa todos os dias, semanas, meses e anos de nós duas. Um dia restará a outra, colar os pedaços desfeitos, juntar os cacos, restaurar rostos amarelados de nódoa e salvar um retrato 3X4 com uma dedicatória apagada atrás. Sobrará a esta, que por último ficar, a tarefa insignificante, mas também árdua, de manter um galho da árvore de pé, até o seu último dia. Tenho medo de ser essa última, tenho medo também de não sê-la.

    Talvez receba visitas, talvez só conviva com os fantasmas ou, ainda, talvez só restará a essa que ficar a herança caquética de duas histórias ordinárias e através delas outras tantas, também desabitadas de grandes feitos. 
    E então, no empilhar dos dias,  reconhecerá o vácuo, um lapso de tempo, onde as duas histórias não se encontram mais. Será só a sua história, deslocada de outra que não poderá contar ou guardar.
    Um dia, tentará se lembrar desse tempo, da lacuna entre os dois recortes, de quem era, quando não eram mais duas. Abrirá gavetas, vasculhará envelopes, investigará anotações com uma letra que não é sua e só encontrará o  desconhecimento do que achava ser também a sua história. 
    Como uma museóloga resignada, organizará a falta, o hiato, a falha, deixará que também contem a história de duas.

     Polirá as panelas que restaram, deixará que os gatos tomem sol na porta da cozinha, enquanto esfria o café e acompanha a fileira dos últimos dias de duas se organizar independente. Assistirá a sequência de duas marinheiras separadas em dois botes estreitos, sem remos, sem luz, sem direção.
    Depois, só a história de um dos botes; os dias de solidão e beleza, o sol implacável e o medo, as águas azuis e as ilhas paradisíacas, o sal corroendo a carne e a insuportável sede. Os outros itinerários, os mapas que não levam ao lugar certo, os portos que não visitam mais juntas, as novas tripulações em outras embarcações.
    Um dia, terá uma história isolada de outra, a qual não poderá resgatar porque não sabe para que lado foi.
 
    Vamos desaparecer, algum dia, e sobrará, a quem ficar por último, as músicas preferidas da outra, um cantor, uma voz, alguns filmes e o desenho da aranha Charlote. Laço, sangue, rituais, muito mais do que mil dias, couve e chuchu, as galinhas do quintal da avó, as mãos do avô na massa do queijo, ainda imaturo. Porta-retratos, porta-chaves, porta com chave e trinco, portas abertas. Propaganda de cigarro, a festa de formatura.
    Um dia, o silêncio de um tempo estará sobre a mesa e a mão não esconderá essa falha doméstica em nenhum armário, gaveta ou quarto escuro. Porque não se recusa a herança de um ente muito amado. 
 
    Vamos desaparecer, mas não hoje. Ainda flutuamos nas águas. Que os dois botes estreitos regressem um dia, senão, será a história de um só.




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, um de fevereiro de vinte e três

Prezada Amanda

Guarda consigo o incrível e resoluto poder do ponto final, este universal código de pontuação que encerra um período. Aqui reproduzo a síntese da síntese do excelente texto que acabo de ler:

"Um dia, uma de nós será só e uma."

Vê o poder do ponto final? Não exclama, não interroga, não dá sinal de continuidade com uma vírgula ou até um ponto e vírgula. Deixa com isto questões em aberto ao leitor, como se soubéssemos que a vida começa com letra maiúscula e termina com o ponto-final, marcando o encerramento de todas as informações semânticas e elementos sintáticos que uma vida exige.

Após o Ponto Final, enfático, o que virá? A morte existe? A vida se apaga na finitude da carne ou acende ou ascende? Você faz a gente pensar sem acarretar a dúvida hiperbólica cartesiana. Isto é bom!

Um abraço

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, dois de fevereiro de dois mil e vinte e três

Querido Paulo,
empregar o ponto final talvez seja uma das coisas mais difíceis, nas narrativas (ou porque nos afeiçoamos a elas e não queremos que termine ou o contrário, não gostamos e queremos que melhore) e fora dela (por motivos semelhantes aos anteriores). Mas tantas vezes é essencial e libertador. Admitir um fim é também aprendizado.

Grata pela leitura generosa de sempre e visitas regadas de gentilezas e sabedorias.

Abraços,
Amanda