Está na esquina, entre uma travessa e a rua principal. Está sozinha e não tem nada nas mãos. Me vê descendo a rua e sorri. Não parece ter pressa, mas parece ter tomado uma decisão; já com o corpo um pouco inclinado, como quem se prepara para descer da calçada. Me aproximo, porque é o meu caminho e ela continua sorrindo.
Então ela me para e me pede para atravessá-la até o outro lado da rua. Não ouço o pedido, porque estou de fones, mas leio os seus lábios. Tiro um dos fones do ouvido, caso ela queira dizer algo mais e ofereço o meu braço. Enquanto, atenta, tento fazer o que ela me pede, sem erros. Ela quer chegar à mercearia logo em frente, do outro lado da rua.
A rua é íngreme, a calçada está muito irregular e
por isso me sinto ainda mais desafiada. Encontrar o melhor lugar para ela colocar os pés, de chinelos almofadados, e ter cuidado com o trânsito.
Um caminhão do qual um homem descarrega mercadorias, está estacionado bem em frente à entrada do pequeno armazém. Penso, por alguns segundos, se contornaremos o caminhão por baixo ou por cima. Por baixo parece ser mais fácil, já que teremos que andar menos, mas mais inseguro também, caso o caminhão, por algum motivo, se mova só. O alerta da infância me revisita.
Somos duas, agora, mas a decisão do caminho é só meu. Não quero abalar a segurança dela com a minha dúvida. Decido pelo mais seguro, embora mais longo. Ela me acompanha completamente entregue. Confia em mim, sem concessões. Eu projeto o nosso caminho e ela me segue. Subimos um pouco, ela arrasta os pés, enquanto eu olho, atenta, ao movimento dos carros.
Sua locomoção é lenta e os gestos muito delicados, o que me obriga a um ritmo completamente diverso ao que eu estava até agora há pouco. Mas a adaptação não é torturante, até gosto da mansidão que ressoa. Somos duas, agora, uma pequena mulher muito grisalha e sorridente e uma grande, de cenho franzido pelo sol, que atravessa a viseira do boné azul. Somos duas, agora, numa pequena ilha, encontrando soluções para não sermos mais sós.
A mão dela é fria, tem a pele fina,
macia, é tão suave no meu antebraço, que eu me esforço para senti-lo; para não perdê-la nessa travessia. O seu corpo é bastante encurvado, formando uma corcova bem destacada, dessas
de senhoras de desenhos animados. O cabelo com um corte tigelinha me
faz lembrar de Agnes Vardà. E a voz é tão suave e pequena quanto ela. Gosto de ser sua companhia nesses minutos.
Eu nunca a vi antes e ela confia em mim o seu destino, a sua vida — um tanto dura, da qual me conta enquanto atravessamos:
— Meu marido está doente em casa, não levanta mais. Meu filho não enxerga. É novo ainda, mas está cego. Por isso eu é quem venho. Só tem eu para vir.
Mas ela sorri, ainda. Nenhuma sombra cinzenta de tristeza invade nossa ilha, mesmo quando me fala da solidão de ser a cuidadora única dos seus.
A travessia é curta. Suspiro pela vitória de ter cumprido o meu propósito mais inusitado do dia. Chegamos do outro lado, depois de contornarmos o caminhão estacionado, pela via mais segura. Ninguém nos olhou, ninguém se incomodou conosco. Não atrapalhamos o trânsito, ninguém morreu agora.
Quando ela se sente segura, solta o meu braço e se despede:
— Muito obrigada, minha filha. Deus te abençoe.
Alguns minutos depois de deixá-la, penso se não deveria tê-la esperado. Me oferecido para levar as sacolas, lavar algumas louças e talvez ter cozinhado para eles. Penso nela ao longo do dia inteiro. Em como lava as roupas, como vai ao médico, se toma os remédios na hora certa e com quem conversa.
O comércio é pequeno, certamente alguém irá atravessá-la, quando voltar para casa.
Me lembro quando fui atropelada por uma bicicleta, não tinha quatro anos. Por algum tempo, depois do incidente, tinha pavor de atravessar ruas. Voltarei a ter? Pedirei que me atravessem? Tenho dificuldades em pedir, mas talvez tenha que fazê-lo um dia. Saberei sorrir? Terei a delicadeza dos mesmos gestos que me acompanharam na travessia?
Penso muito nela esses dias, tenho diminuído meu ritmo, quando chego à esquina e olhado sempre para o mercadinho à procura dela. Na noite seguinte ao encontro, o filme de Gaspar Noé dói e traz de volta a senhorinha da rua, a Agnes Verdà da minha esquina que me atravessou num dia quente de verão. Um dia serei ela ou não. Um dia ela foi o que sou ou não. Um dia, nós duas, isso sim.
Na rua íngreme de calçada irregular, é ela quem me atravessa todos os dias, agora.
2 comentários:
Parece que você leu meus pensamentos... desde a visita à tia tenho pensado no caminhar dos próximos anos...
Melhor é vivê-los como podemos...com a intensidade e a liberdade que escolhermos. O resto são só suposições e apreensões ainda. Beijos
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