Agora é uma voz. Quando muito, algumas peças de roupas penduradas no varal da janela que dá
para a área de circulação de ar do prédio. Mas é a voz que revela e está mais presente.
para a área de circulação de ar do prédio. Mas é a voz que revela e está mais presente.
Quando eu me mudei para o prédio, há mais de uma década, ela já estava aqui e era um corpo, uma pessoa de pé, uma mulher de pernas firmes, gestos amplos e postura ereta. Já era idosa, mas independente. Fazia exercícios pela manhã, voltava com sacolas de supermercado cheias, levava o cão para passear duas vezes por dia, recebia visitas à porta e encomendas na portaria. Não sei quantos anos tinha, tampouco sei quantos tem agora, mas suponho que tenha mais de oitenta.
Ela tem um nome e uma cor de cabelo inusitado que há muito eu não vejo mais. Ela tem um apartamento de dois quartos, sala, cozinha e banheiro, uma história a qual eu pouco conheço, familiares que aparecem quase todos os dias e, agora, a voz e uma cuidadora.
Foi em um inverno que ela deixou de aparecer, uma enfermidade a afastou alguns dias de uma rotina que eu conhecia bem e quando voltou do hospital, não saiu mais do apartamento. Algo no pulmão. A voz, que ainda é presente, denuncia o antigo hábito; foi fumante, o que eu já supunha antes da sua doença.
O silêncio do apartamento ao lado foi se aprofundando e, de alguma forma, contaminando os outros apartamentos do sexto andar. Ela deu o tom e nós a seguimos. Ninguém dá festas, os cães pouco latem e mesmo as engrenagens do elevador, nesse andar, respeitam o som ambiente. A cuidadora chega todos os dias às sete horas; às seis e meia, quando vou à cozinha fazer o café, olho pela janela e vejo a cama dela já feita. Acho que ela se levanta, arruma a cama, toma banho — isso eu sei porque pontualmente às seis e quarenta e cinco, ouço o chuveiro dela — se veste e espera pela companhia que inaugura a sua voz no dia.
As nossas paredes são
irmãs, estamos separadas por uma coluna de tijolos e concreto, este
último não estou muito certa. Mas no apartamento o silêncio é habitual
e a cada dia mais profundo. Havia os latidos e algumas frases de
comando e afeto ao cão. Mas o cachorro se tornou idoso, desde que cheguei, e também
adoeceu, quase ao mesmo tempo em que a sua dona. No ano passado, ele
morreu. E então a voz também ficou mais rara.
Há
o som da TV, mas o volume é muito mais baixo do que o dos outros
apartamentos, então são os barulhos comezinhos como o da água na pia, o
do chuveiro, quando ligado, o da máquina de lavar ou do aspirador de pó e
de algumas conversas muito raras entre a senhora do 601 e a sua
cuidadora, que trazem alguma vida àquele microcosmo.
Ouço o bom-dia e a sua resposta, na chegada da acompanhante, algumas observações sobre o clima, as estações e o sabor da comida.
Mas há horários em que a escassez de sons se torna angustiante. Entre às seis da tarde e até às sete do dia seguinte, a voz não habita o apartamento e os barulhos são muito mais sutis. Nenhuma porta bate, nenhum copo cai, nenhum talher raspa as panelas.
Busco qualquer som, alguma prova de que há vida no apartamento vizinho. Foi a ausência de som, que anunciou todas as mortes que eu presenciei, até aqui; a do canário belga, quando eu tinha oito anos, a do gato a quem eu pertencia aos vinte e oito e o silêncio mais cortante, o da minha avó no seu quarto. Todas as mortes que me foram próximas, foram precedidas por silêncios. A ausência de som é o prenúncio da despedida; ao menos para mim. Quando emudecem, sei que acabou. Quando emudeço, sei que é algum fim.
Por isso encosto o meu ouvido na parede e me conforto pelos mínimos barulhos que consigo ouvir, antes de ser vencida pelo sono. Minha vizinha não facilita, mas também não desisto.
Mas uma frase me atravessa todos os dias; pela repetição e pelo que ela talvez signifique. Não há nenhuma outra recomendação tão severa. Nem com as compras na pia nem com as roupas que a cuidadora lava e passa; tampouco com o tempero da comida. Nada parece mais importante do que a orientação final de cada dia. A voz repete a mesma advertência, antes da cuidadora ir embora, às seis da tarde:
— São três voltas de chave!
São três voltas. E eu consigo ouvir as três do meu apartamento.
A primeira, é o sinal da despedida, do final do expediente, do início da noite e de mais um dia terminado. A primeira, sentencia o quase completo silêncio das próximas horas; é o sol que se põe.
A segunda volta, assegura a ida, a solidão que logo entrará no apartamento e que acompanhará a minha vizinha até a manhã do dia seguinte. A segunda volta a devolve à solidão tão humana, tão essencial, tão temida; talvez não mais por ela.
A terceira volta, é a confirmação. É a segurança de que ninguém até a próxima volta na chave, no dia seguinte, poderá macular o silêncio de uma vida que se despede um pouco mais por dia. A terceira volta é a derradeira; a última, aquela que chegará sem volta, sem possibilidade de desfazer as duas primeiras. Depois da terceira, nenhuma volta a mais.
Ouço cada uma das três e já não lamento por nenhuma; porque é assim que a vizinha ao lado ensaia suas despedidas; três voltas e acaba. Um dia, nem a voz.
5 comentários:
Meu pensamento foi pra minha sogra em todo o texto 🌷🤍
Ai, amiga...que bom que ela te tem para ouvi-la. ❤🌹
E que bom que eu tenho você pra ler🌷🤍
Minas Geraes, 22 março 23
Prezada Amanda,
Crônica de uma candura linda.
um abraço
Minas Gerais, vinte e dois de março de dois mil e vinte e três
Caro Paulo,
grata pela leitura e pela beleza do elogio. Fico sempre muito emocionada pelas suas interlocuções aqui.
Abraços,
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