— Bom dia! Por favor, a senhora encontrou uma calopsita?
Não são sete da manhã do domingo, eu ainda não me levantei — gostaria muito de continuar a dormir — e já sei que uma calopsita de outra rua está desaparecida. A sua dona, desesperada, tocou em quatro interfones de apartamentos à procura do pássaro.
Não são sete da manhã e uma moça fala alto ao interfone, enquanto conversa com alguém que a acompanha. Sua voz ecoa no hall e mesmo que eu não quisesse, escuto além da voz, o seu desespero.
Ela começou a sua diligência pelo primeiro andar, não demorará a chegar ao meu, caso não encontre o que procura. Mas continuo deitada, talvez deixe-a tocar e não atenda.
Não são sete da manhã e o acompanhante da dona da calopsita, explica para um morador, o que é uma calopsita, quando a moça tem que repetir o que procura por três ou quatro vezes e a interrogação persiste.
— É um pássaro, é pequeno e esse tem penas brancas.
Não são sete da manhã e eu me pergunto como eu sei o que é uma calopsita. Nisto sou solidária ao vizinho com o qual não me simpatizo muito. Calopsita é algo um pouco recente no quesito animais domésticos. Lembro dos canários em gaiolas nas casas dos meus vizinhos, quando eu era criança; depois, uma profusão de aquários de todos os tamanhos, que decoravam casas e faziam a alegria de crianças alérgicas com seus Betas coloridos; dos porquinhos-da-índia — mas só para quem tivesse quintal — e os hamsters, esses sim, animais de apartamentos, se os donos assim os quisessem.
Não são sete da manhã e eu já fiz um inventário de animais domésticos relativamente populares em alguma época não muito remota.
Não são sete da manhã do domingo e ela continua a sua jornada de investigação. Está nervosa, mas é educada na abordagem e a cada — não vi — do outro lado do interfone, a sua voz embarga um pouco mais. Me incomodam as vozes no hall, o horário, a desordem provocada por um sumiço na manhã de domingo. Mas eu já não tenho mais descanso. Queria continuar na cama, queria o silêncio habitual, queria ter a paz de um dia de semana sem agenda e as outras angústias varridas para debaixo do tapete da porta de entrada até o dia seguinte; mas hoje a paz não existe, o silêncio foi quebrado. Vou me levantar e talvez consiga ainda, nesta manhã, algumas horas mais de tranquilidade.
São quase sete e eu resolvo que eles não tocarão o meu interfone, vou me adiantar, abrir o portão da frente e oferecer que inspecionem pessoalmente cada canto do prédio. Levanto-me da cama, ajeito o cabelo no espelho, me enrolo no quimono e apareço na janela. Não vou ser só mais uma voz para ela.
— Ei! Não preferem entrar? Vocês olham nos corredores, no jardim, na garagem e podem bater nas portas dos apartamentos dos fundos.
São exatamente sete da manhã do domingo e eles se assustam. Não sei se com o barulho da minha janela aberta abruptamente, sem o óleo, o qual eu esqueço de pingar nas dobradiças e, por isso, não há sutileza na sua abertura. Ou se assustaram-se com o primeiro rosto do prédio revelado ou se com a proposta de verem outros rostos, já que as vozes não foram efetivas.
Concordam em entrar, agradecem e eu aperto o botão do interfone. Não vão me chamar, as vozes vão se calar e eu vou voltar ao meu descanso. Sentada na beirada da cama, lembro dos seus rostos. A moça de bochechas, nariz e olhos vermelhos de chorar e um menino com ela, talvez irmão; pequeno, mas uma espécie de escora, de apoio fundamental para os dias difíceis . Não consigo me deitar ainda.
Quando abri a janela, uma lufada fria veio de fora, não estou mais tão relaxada e morna. Depois, eu vi um choro, uns olhos de medo, de quase perda e um amparo gentil. E isso também não me deixará sonhar mais essa manhã.
Já passa das sete e as vozes altas do hall, são substituídas por murmúrios de dois jovens perdidos num prédio, procurando uma calopsita branca. Já tocaram algumas campainhas, mas ninguém atendeu ainda, continuam murmurando. Desisto de me deitar, ia passar um café, mas resolvo abrir a porta, antes que toquem a campainha.
Desço as escadas, sugiro alguns lugares em que a calopsita tenha podido se abrigar. Não falo do reservatório de água no porão, omito os cães grandes dos apartamentos do térreo e o gato do primeiro andar, que anda sempre solto; porque talvez sejam predadores. Não sei. Não conheço a dinâmica entre cães, gatos e pássaros, mas suspeito. Prefiro que tenham esperanças de encontrá-la com vida e bem.
Mostro o jardim, abro o depósito de lixo e um uma despensa de produtos de limpeza. Subimos todos os andares, passamos pelos corredores, mas não aconteceu o encontro.
São quase oito horas do domingo e eu que só tinha planos de dormir, estou sentada de pijamas, cabelo com um coque, de chinelos com meias e em jejum na mureta entre o jardim e a entrada do prédio com dois adolescentes desolados. Uma calopsita sumiu e não há insistência, vozes, descrição do que é uma calopsita, janelas e portas abertas que a façam retornar de onde nunca imaginaram que ela voaria.
Não sei se a liberdade da calopsita branca foi planejada e voluntária ou se ela se perdeu ao ultrapassar um limite sutil. Mas agora somos três humanos no jardim de um prédio — que inteiro dorme ou finge que dorme — vencidos; ligados por uma busca, mas isolados pelos nossos segredos. Os meus são cinco: o reservatório de água, os cães, o gato, que eu só me levantei porque queria silêncio e que se eu perdesse a calopsita, queria que alguém pudesse explicar o que é uma calopsita, enquanto eu chorasse.
Abro o portão para a dupla de perscrutadores e, como se fossem duas calopsitas, eu os devolvo à rua. Tão logo o portão se fecha e eu começo a chorar. Não sei se de cansaço, se pelo despertar tranquilo de domingo rompido ou se pela perda que eu também não posso evitar. Ela sabe o nome do que perdeu, uma calopsita. No número cento e sessenta e cinco. Ainda tem portas nas quais bater, há apelações; uma geografia e uma retórica.
Uma perda conhecida. Eu não.
Subo as escadas, abro a porta e fecho as perdas para dentro; de onde nunca saem. Enquanto fervo a água do café, me lembro de pingar o óleo nas dobradiças da janela. Duas gotas e já desliza sem barulho.
— Como é vulnerável a vida de quem aparece à janela.
Não são sete da manhã de segunda e uma moça toca o interfone.
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