E o caubói atravessa a mocinha até o outro lado da rua
Quando ela entra está quase escuro. As luzes já se apagaram, mas a projeção da tela possibilita alguns fragmentos de luminosidade. Não vejo o seu rosto, não sei a roupa que ela veste, mas acompanho o seu andar vacilante, a silhueta da sua postura curvada e a sombra de um coque no alto da sua cabeça. Com ela, somos três mulheres na sessão de cinema agora. O público é pequeno e majoritariamente masculino, isso talvez se deva, em parte, pelo gênero do filme.
Ela cambaleia pelos corredores, mas não se senta nas primeiras poltronas — talvez como eu fizesse, se estivesse no escuro — ela parece ter um lugar de preferência e segue até ele. A sessão é a das nove, é um domingo, véspera de feriado e a cidade não
parece cheia, ao menos nesse quarteirão. Ela não está acompanhada, os
seus passos dentro da sala, mesmo vacilantes, são bem fortes, chego a
sentir uma espécie de trepidação do meu lugar, ainda que não fiquemos na
mesma fileira.
Embora ela tenha chegado alguns minutos atrasada, o filme ainda não começou; e suspeito que já soubesse dos dez minutos de propaganda antes do longa metragem, porque não tem pressa, não parece se incomodar em andar pela penumbra dos corredores.
A sala de cinema é no centro de uma grande cidade e os ingressos são gratuitos, o público que eu encontrei na pequena fila, pareceu familiarizado com o lugar, os horários e os ritos. Logo, talvez ela também seja frequentadora habitual e por isso essa destreza na entrada, embora um pouco dificultada pela aparente limitação física.
Ela se acomoda no que conhece, embora para mim pareça arriscado. Noite, velhice, mulher, solitária, no breu.
A sessão começa e eu a observo eventualmente. Na tela,
uma mulher bonita de classe alta faz um casamento ruim e é salva pelo
destino. Nas poltronas, uma mulher de passos irregulares assume os
riscos da noite, da precariedade do transporte público e se salva da dureza que é a realidade. Na tela, uma mulher charmosa é salva pela segunda vez, agora por um amor. Na poltrona, uma mulher de idade mais avançada se entrega ao sonho que a arte proporciona.
No filme, o caubói se apaixona e salva a mulher amada. Na poltrona, uma mulher se levanta sozinha depois que os créditos sobem. Nenhum abalo com o som dos tiros ou com as lutas corporais; o cavalo morre, o menino e o pai morrem, o caubói e a mocinha são ameaçados por mais de sessenta minutos seguidos e ela continua firme.
O faroeste acaba, as luzes acedem e ela se levanta com dificuldade, mas nada com pressa, ela não tem urgência e acho raro esse outro tempo. Um espectador se aproxima dela, parecem antigos conhecidos. Talvez dali mesmo.
Lá fora venta, o homem nos aborda e deseja que um de nós peça um carro pelo aplicativo, explica que não tem celular por prudência com a própria saúde mental. Eu o invejo. Ele usa um blazer preto, uma echarpe azul marinho e tem uns cacoetes enquanto fala:
— Um bom faroeste, não? Dramático, melancólico. As mortes no começo, que tristeza a perda do amigo e do filho do amigo...Muito boa produção!
Ele pede um minuto para ajudar a mulher idosa atravessar a rua e não sabemos se ele volta. Parece aflito entre ajudá-la e não nos perder.
Sinalizamos que o aguardaremos. Ele oferece o braço à amiga e os dois, de longe, pequenos, frágeis, no meio de uma avenida imensa, se apoiam até o outro lado.
Ele volta correndo e explica, ofegante:
— Ela precisa ser ajudada. Já é tarde, ela está muito combalida, mas ama cinema, fazer o quê?
Não sei e ele sabe. Ajudá-la a chegar ao outro lado. Ela ama cinema, ele diz. Ele também ama, imagino. Custa tanto a nos encontrarmos com um amor, às vezes, e é por isso que eles vêm.
Ele me fala o seu endereço e eu digito no aplicativo, falo o valor da corrida e confirmo se posso pedir. Ele recua:
— Pensando bem, a noite está tão bonita e ainda é cedo...Vou caminhando.
Agradece, se despede e atravessa a avenida, de novo, ao encontro da mulher que está no ponto de ônibus, agora.
Em poucos lugares somos capazes de reconhecermos o escuro, não nos assustarmos com ele, não sermos repelidos quando enxergamos pouco; porque há outras sensibilidades que nos orientam. Em poucos lugares reconhecemos o assento, o encosto e nos entregamos sem concessões ou medo.
São também raros os amores e breves as possibilidades de encontro com eles. A sessão de domingo é a missa que ela não falta; a sessão de domingo é a roupa que ele tira do armário, se veste e não se intimida se não tiver dinheiro para a volta.
Em frente à sala de cinema outras vidas tão interessantes quanto às da tela se projetaram com as luzes acesas. Quero ter essa coragem de encontro. Quero sair de casa em qualquer idade, sob qualquer dificuldade e assistir a um faroeste na noite de domingo.
Nesse faroeste, o caubói atravessa a mocinha até o outro lado da rua e o happy end é não sucumbir à realidade. Os caubóis não têm um metro e oitenta, as mocinhas não se locomovem com a graciosidade de uma dama e não precisam ser salvas, mas podem precisar de algum amparo.
2 comentários:
O cinema e a realidade sendo derrotados pela sua versão ficcional dos acontecimentos.
Derrotados eu duvido...impossível! Mas, talvez, acrescidos. 😊
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