A temperatura média dos oceanos na Terra bateu recorde no último ano; é o que eu leio na chamada secundária do jornal. A principal é sobre o dólar e depois uma imagem repugnante de um líder espiritual. Logo abaixo, outra matéria chama a minha atenção, a de que cientistas se preparam para fazer incursões à Júpiter à procura de oceanos.
Lá vão eles aquecer outros mares. É o meu primeiro pensamento, o outro é de que nem todos conhecem o mar; eu mesma só conheci aos doze anos, minha avó aos cinquenta e sete, a mãe dela não sei se viu o mar alguma vez. Mas todas nós sabíamos que ele existia, antes de o vermos. Fecho a página de notícias e me levanto da cama.
Preparo a minha xícara de café, enquanto assisto à uma reportagem na TV, gravada em algum espaço rural. Bebo o café quente, ainda em pé, para acompanhar um resumo do cotidiano de uma família que vive numa casa sem energia elétrica. A questão não é não terem o acesso, ao que parece, mas uma opção.
Fico curiosa e não abandono a narrativa, a principio tão terna.
Sonho que podíamos viver assim, sair daqui e nos metermos num sítio para criarmos galinhas. Sem energia elétrica, sem notícias antes de nos levantarmos da cama, sem TV, só tomaríamos café, olhando a paisagem pela janela.
A jovem mãe explica que não tem TV ou qualquer outro eletrodoméstico, então o repórter pergunta — Nem celular? Ela responde: — Celular eu tenho sim e carrego a bateria na casa da minha mãe. Me decepcionei, sabe? Logo o celular!
Os pais da moça moram a poucos metros e têm energia elétrica. Então não é mais um desapego, assim tão genuíno, que eu fantasiei. Já não quero ir mais.
Desligo a TV, termino o café, troco de roupa e passo o filtro solar com mais cuidado nos últimos dias. Voltei a ter medo. A manhã não está tão ensolarada, começa a refrescar, caminho pela mesma rua há décadas, mas hoje parece diferente. Mais lenta, mais fácil, mais casa. Vou rápido, mas não me ocupo com nenhuma meta no aplicativo de exercícios. De longe, uma cortina balança para fora da janela de um apartamento. Olho para capturá-la, olho com a profundidade que suspeito que a memória possa abrigar a imagem tempos depois.
Não me mudarei daqui, por enquanto, então me fixo na cortina, no vento, no clima fresco e na confiança de estar protegida pelo filtro. É este o lugar possível.
Portanto, não ficarei apreensiva, já que o dia vai bem, porque não entornei café na roupa, não quebrei nenhum copo, nenhuma ligação me acordou antes do meu alarme, meus tênis estão secos e é possível que o exame dele não seja tão grave assim.
Caminho com mais confiança. Os oceanos mais quentes não me desanimarão, nem a colonização de Júpiter, tampouco a moça que não tem energia elétrica em casa, mas continua presa ao celular. Passo pela janela com a cortina flutuante, que agora balança muito mais rápido e forte, e suspiro pela imagem que eu quero carregar pelo resto do dia.
Mas a poucos metros sou surpreendida por outra cena. Uma mulher na mesma avenida, na direção contrária à minha, corre bem devagar, numa espécie de trote — aquela corrida meio caminhada — com uma mochila para frente e uma guarda-chuva aberto. Parece uma fuga em câmera lenta.
Ninguém atrás dela, nenhum sinal de chuva ou raios solares fortíssimos, mas ela passa por mim com o guarda-chuva aberto e uma expressão amedrontada. É tão inusitado que, de novo, me rouba as certezas.
E se os oceanos aquecerem muito mais nos próximos anos? E se eu não souber mais viver sem energia elétrica ou em qualquer outra parte do mundo? E se eu nunca for capaz de criar galinhas? E se Júpiter for uma possibilidade?
Será uma fuga ou uma descompensação emocional? Ela tinha medo nos olhos e passou por mim com passos inofensivos, que não a levarão para muito longe.
Eu já procurei outros lugares, procurei esquecer quando doía, adiar a decisão que ainda não estava assentada, suspender o tempo entre a coleta e o resultado. Às vezes eu cortava o cabelo ou pintava. Às vezes só desligava o telefone, em outras, começava um livro novo no meio do dia, no meio do trabalho, mesmo que fossem poucas páginas e sorrateiras leituras, escondidas atrás do computador ou na copa do prédio.
Eu já procurei outros lugares quando quis encontrar alguém e partilhar de um mundo muito particular e irrepetível. E morei.
Fui à bibliotecas, livrarias, camas em outras cidades, apartamentos que eu não conhecia. Assisti à centenas de filmes e quis guardar para sempre imagens do meu dia, que eu esqueci. Olhei muitos minutos para a cortina na janela do apartamento, mas o olhar da mulher é o que me mobiliza. Passo em frente à igreja da praça, o homem com o cão acena de longe para mim; devolvo o cumprimento e sorrio, como se pudesse sempre.
Corro todos os dias com uma mochila para frente, grudada no meu peito e um guarda-chuva aberto. Talvez alguém já tenha me visto assim. As cortinas balançam ao longo da avenida, mas estou em permanente fuga, ao menos alguns dias. Nem no Tibet estaremos para sempre livres ou seguras.
Essa sensação de que a paz não nos encontra nunca é mais difícil que
encarar a noite num sítio em que os pais são vizinhos e têm luz.
A paz é
o mar que não vemos, mas sabemos que em algum lugar ele está. Às vezes
conhecemos aos doze anos, noutras aos cinquenta e sete, noutras só
saberemos de ouvir falar ou teremos que ir à Júpiter para encontrar. Para o lugar que a mulher de mochila e guarda-chuva corria, deve ser esse o lugar.
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