domingo, 9 de abril de 2023

Esse anzol que nunca alcança a garganta

    Eles chegam quando eu já passava pelo segundo corredor do supermercado. Fui à farmácia antes e já os tinha visto lá. Nenhuma cena em especial me fez lembrar deles, recém-conhecidos há pouco, a não ser pela mão do menino quase colada ao bolso da saia da mãe. Quando os vi na fila, lembrei da minha infância, quando também gostava de me atar em alguma peça de roupa ou assessório da minha mãe. Mas com eles é diferente, na farmácia passaram longos minutos assim e aqui no supermercado também. A saia dela torta, o peso da mão de um menino, de uns nove anos, o tempo todo no bolso dela e o pai um pouco afastado, chateado com alguma coisa.
    Estou gripada, os corredores parecem mais frios e longos do que o normal, estou febril e também me chateio por ter que sair de casa. 

    Logo o supermercado começa a ficar mais cheio, os arranjos com ovos de páscoa parecem, a cada gôndola, um pouco mais baixos, me sinto sufocada e só quero ir embora. No próximo corredor, encontro os três de novo, silenciosos, cabisbaixos e distantes uns dos outros, embora a mão do menino ainda esteja na saia.
    Só preciso de mais três itens, que não encontrei na farmácia, antes de ir embora. Na esquina, entre um corredor e outro, acompanho a cena que irá desencadear toda a explosão que virá depois. 
    A mãe precisa passar entre o carrinho de outro cliente e um expositor de pó de café, então para passar no apertado espaço, ela retira a mão do menino do seu bolso. O  singelo gesto parece disparar uma bomba. O menino começa a gritar, gesticula com uma potência e amplitude que não cabe no exíguo espaço e, por isso, seus braços batem nas prateleiras, derruba objetos e em poucos minutos cria uma pequena aglomeração. 

    A mãe tenta acalmar o filho, o segura contra o peito, faz massagens nas suas mãos, que agora tem os punhos fechados, ela tenta abri-los, para que ele relaxe, fala algumas coisas no seu ouvido e embora, de novo, sob a proteção materna, o menino continua com os gritos. O pai, antes silencioso e distante, se aproxima dos dois, que agora estão no chão, no meio do supermercado, se abaixa e diz algumas palavras para a mulher. Não tenta acalmar o filho, nenhuma palavra, nenhum gesto de consolo. 
    De longe, só leio nos lábios dele, por duas vezes: — A culpa é sua.
    Ele não grita, não faz gestos largos, como filho e a mãe há pouco faziam. O menino grita e a mãe parece não se atentar para o que homem diz. — Levanta. Eu li três vezes esse comando nos lábios dele. Alguns minutos depois, a mulher levanta o olhar e o liberta:
    — Então vai. Pode ir.
    Ele deixa os dois no corredor dos produtos de limpeza e vai embora. A aglomeração é menor. O menino quase não grita. Uma funcionária do supermercado traz um copo com água, o gerente pergunta se pode ajudá-la com algo. Uma senhora pede que todos voltem às compras e deem espaço aos dois. 

    Olho a minha imagem refletida nas portas de uma gôndola refrigerada. Estou em péssimo estado. Há olheiras e um cansaço visível. Sorrio e me lembro de quantas vezes me permiti sair assim. Quase nunca isso aconteceu antes. Até para ir à emergência médica eu usava um pouco de corretivo e pó nas pálpebras. Essa preparação e cuidado talvez sejam resquícios das minhas mais remotas esperas.  
    Meu pai foi a primeira expectativa de amor que eu vivi, depois dele eu conheci outras, mas nenhuma mais dolorosa do que essa. Desejar o amor, se esforçar por ele, ter medo de errar e perder o que nem sabe se tem.
    Minha mãe  era quem me arrumava todos os dias antes do meu pai me buscar; fez o que ensinaram a ela, o que ela achava que era mais certo. Hoje penso que talvez meu pai me amasse, mas as suas emoções foram aprisionadas pela mesma escola da minha mãe. Ninguém errou. Consegui aprender outras coisas depois deles; eles inclusive me possibilitaram o acesso a outras perspectivas. Mas é cruel. É doloroso e as marcas ainda estão aqui.
 
    A mulher ainda consola o filho, diz que já vão para casa logo.  Um homem jovem se aproxima, pergunta se ela tem uma lista de compras, ela diz que não e ele sugere que ela faça um áudio com uma lista do que precisa, que dê uma volta com o menino, enquanto ele procura para ela. Ela se constrange, se nega,  mas a funcionária, do copo com água, insiste e promete que irá ajudá-lo. 
    O filho se acalma, continua deitado no colo da mulher, ela ajeita a postura, sentada ainda no chão, o rapaz posiciona o próprio celular para que ela grave e então começa: 
    — Iogurte de morango Itambé, uma caixa de Sucrilhos sem açúcar, cream Cheese Presidente, Filtro de café Melitta...
    Depois de terminado o áudio com a lista, ela sai com o filho, ele com a mão em um dos bolsos da sua saia e agradece ao rapaz. 
    Ela está do lado de fora, um jovem empurra um carrinho que não é dele. Aos poucos, o mundo não está perdido, algumas expectativas podem ser realizadas.

    Sabão em pó, achocolatado, filtro de café, cebolas, um pacote de milho de pipoca, água sanitária, amaciante de roupas, margarina, cream cheease, sucrilhos.
    Eu passei a odiar a ideia de que eu precisava estar impecável para o meu pai. Quando ele chegava, não tinha suor, cabelos oleosos ou remela. Quando eu estava gripada e de cama, minha mãe trocava o meu pijama, antes dele chegar para me ver...nem doente eu poderia ser uma desordem na corrida vida do meu pai.

    Eu desejei o amor dele desesperadamente, eu me encaixei no que pude e quando eu achava que estava perto, meu pai tinha um compromisso de última hora, trabalho inadiável, alguma dívida preocupante. E o que parecia tão próximo, se afastava de novo. Eu voltava para casa humilhada, ainda mais triste e desesperançosa de ser amada. Talvez não merecesse, talvez precisasse de algo mais que eu nunca teria.
    Não teve corte de cabelo, atividade artística ou esportiva que trouxesse meu pai para mais perto. Nenhuma faculdade, namorado ou estar solteira. Nada.
 
    A expectativa do  amor era o anzol. Eu nadava ao seu encontro e depois que me aproximava muito, abria a boca o quanto podia. Às vezes o anzol raspava meus lábios e sumia, de novo. Às vezes entrava na boca e eu o sentia girando no meu palato, mergulhando na minha língua e, num segundo, desaparecia mais uma vez. Às vezes demorava mais minutos e eu sentia o gosto do metal, chegava a embrulhar o estômago, mas eu acreditava que era parte essencial do rito. Mas anzol não me capturava nunca. 
    E eu me arrumava mais para o próximo encontro, nadava mais, abria a boca com toda a potência que eu acumulava ao longo dos seis ou cinco dias da semana, a depender quando pescador pudesse vir ao rio de novo. Eu esperava mais daquilo que eu nunca teria ali. Eu esperava o mínimo, o simples, o absolutamente banal para os outros peixes, mas impossível para mim. 
    O pior da ausência paterna não são os aniversários, os segredos não compartilhados, os bolsos que nunca estão acessíveis. É o gosto do metal que nunca mais sai da boca. 
    Essa mãe que aprendeu na mesma escola que a minha — a maioria frequenta essa aula — mas um filho precisa ser amado tal qual uma mãe aprende amar, com toda a desordem da vida. Olheiras, gritos, desobediências e cabelos desgrenhados. Um pai precisa, também, conhecer os caminhos tortuosos e enfadonhos de um supermercado; um filho precisa saber que é amado antes de escovar os dentes.
 




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, Libertas Quæ Sera Tamen, 25 abril 2023

Prezada Amanda,
Matiz das dores do mundo

Esta crônica é profunda, profunda, profunda. Toca no arcabouço do engendramento humano. Vou tentar ser mais objetivo. Da vez anterior, logo aqui abaixo, acabei me censurando quando vi que o comentário ficara maior que a postagem, aí deletei e sintetizei.

Você trás duas situações singulares, sem paridade, mas altamente construtivas. A da narradora, que aborda a relação pai e filha, cujo foco está na importância do pai para a construção da identidade da filha, principalmente no que se refere às influências de como ela age no mundo e pincela cautelosamente, ou seja, passa ali às margens da compreensão da dinâmica pai-filha. Fantástica narração. Deus permitiu que eu tivesse só filhas e sei bem o que está ai descrito.

Há no interior da crônica a dor maior - A narrativa da mãe, seu filho e o pai do seu filho. A maior perda de uma mãe cujo filho tem um espectro de sofrimento mental, e aqui não entrarei nas possibilidades clínicas nem da elasticidade destes processos, é a dor maior de perder seu amante, seu marido, seu amigo, seu partícipe da vida daquela criança. E vc retrata isto com tanta eloquência, tanta maestria, que só a sua capacidade de discernir o outro é capaz de promover.

Talvez, considerando a remota hipótese de que você desconhecia este processo inconsciente, você tenha permitido que o instinto feminino navegasse por esta tormenta. O que é mais importante ali é abraçar a mãe, dar-lhe acolhimento, elogiar, atender, prestar-lhe carinho, amor e humanidade.

E sua crônica trás esta vertente, a da percepção da mãe enquanto pessoa humana, feminina, vívida. Emocionei muito com seu texto.

Um abraço!

Amanda Machado disse...

Minas Geraes (aquela que conhece Adélia Prado e sabe também que a Conjuração Mineira não foi uma tentativa de golpe, bem o contrário disso... a busca pela nossa libertação — que ainda não veio.) vinte e seis de abril de dois mil e vinte e três

Caro amigo Paulo,
jamais se censure aqui, especialmente com relação ao tamanho da "conversa". Adoro seus textos; é a interlocução que resiste ao tempo, aos golpes, às pandemias de todos os tipos. E não é só a frequência (claro!), mas a qualidade das proposições... Suas perspectivas e leituras tão generosas ultrapassam as publicações daqui ou, ao menos, somam-se a elas. Da próxima vez não apague. Me sinto presenteada quando chega a notificação do seu comentário!

Quanto ao texto, meu amigo, me emociona a condição de abandono e desespero ao que o humano está submetido desde a mais tenra infância. A necessidade de fugir ao que estamos fadados, desde a concepção, que é à separação.
Fico feliz que tenha se emocionado! Obrigada pela leitura e por vir acrescentar tanto!

Abraços,
Amanda