sexta-feira, 12 de maio de 2023

A louça suja na pia e o pôr do sol no fim do mundo

     Na matéria do telejornal da manhã, um casal de meia-idade sorri para a câmera, estão sentados em uma mesma poltrona, enquanto seguram uma das mãos um do outro. Parecem um pouco tímidos, ela tem um sorriso largo um pouco forçado e ele agita a outra mão, a que não segura a dela, com batidinhas sobre o joelho. É um casal comum à primeira vista, me detenho com a TV ligada porque quero entender o que há de extraordinário ali para receber a visita da equipe de reportagem.
    É uma notícia internacional e gravada em um continente diferente ao da TV. A matéria continua, por um instante, sem o simpático casal, mas com a animação gráfica no mapa que indica o exato marco geográfico da visita: uma das mais de trezentas ilhas do arquipélago Fiji, na Oceania. 
    A ilha, que tinha pouco mais de quinhentos moradores até dois mil e dezenove, agora só tem o casal.

    A edição volta a mostrar a síncrona dupla, cuja rotina parece idílica: banho de mar matinal, café com grãos, frutas e leite vegetal, quase tudo cultivado e produzido por eles mesmos; jardinagem, marcenaria, tardes de leitura, música em um piano, iluminado pelos raios solares que invadem a casa, noites com vinho e contemplação do céu por uma luneta instalada numa janela do mezanino, além das chamadas de vídeo semanais com familiares e amigos que não moram mais na ilha. Caminham todos muito lentamente na TV, na ilha venta e o céu está aberto, quando param em um atracador, onde fica o único barco da ilha, a repórter pergunta como é ser dono de uma ilha, o homem responde:
    — É ter um quintal maior.
      A esposa sorri e completa:
    — Sem cercas.

    Já começo a imaginar como é viver sem as brigas de trânsito, as poluições diversas, as violências em tantos níveis, os espaços apertados, as senhas, a pressa, as filas. Sem elevadores, escadas rolantes, choques nos refrigeradores dos supermercados, fome e sede no ônibus, antes de chegar em casa e ter saudade de alguém que mora a dez quilômetros de distância.
    Tudo parece perfeito, até os dentes da frente um pouco separados no sorriso da mulher e a calvície discreta do homem. E eles ainda têm um cão, que acompanha a peregrinação dos dois moradores de uma ilha e a equipe de TV, que tenta retratar um dia típico de uma vida atípica.
    Começo a gostar da ideia, invejo-os que não terão que chegar a tempo ao ponto de ônibus hoje, para irem ao trabalho, que têm um cão, um quintal — sem cercas — do tamanho de uma ilha e sem vizinhança.

    Mas o cenário bucólico ganha uma nova atmosfera quando a repórter pergunta sobre o dia do desaparecimento da ilha, previsto para os próximos quatro meses, no máximo. Quando um vulcão deverá arrebatar centenas de hectares ao redor. Tranquilos respondem que nada muda na rotina.
    O cão late, o homem se abaixa para fazer um afago na cabeça do animal e a mulher toma a palavra, diz que todos desaparecerão, a diferença é que para eles tem dia marcado. A repórter insiste, sugere que serem arrebatados com a ilha é uma escolha. E, agora, a mulher só esboça um meio sorriso.
    — Porque somos a ilha.
    O homem fala, enquanto retorna do afago ao cão.

    São dois e um cachorro; são dois e um microfone em que declaram que não há possibilidade de voo ou mergulho, porque não há fuga. São dois sorrisos calmos em frente ao cinegrafista que talvez tema que o vulcão se adiante. Querem ferver a água do café, colocar uma música, fazer biscoitos, colher as cenouras e deixar o banheiro limpo até serem submersos em lama vulcânica, quente e vermelha.
    São dois, com um cão e uma ilha que se despediram dos vizinhos e familiares, assinaram termos de responsabilidade para um governo e escolheram não abandonar um destino que podia não ser o deles. A enviada especial da TV não parece entender.

    A erupção do vulcão está prevista para setembro. Até lá, farão passeios no final da tarde, terão caspas nos cabelos e dor de barriga, ficarão entediados, saudosos, melancólicos ou exultantes por qualquer coisa e discutirão sobre a toalha molhada em cima da cama e a tampa da privada levantada.
    O último amor de uma ilha. O último casal em um mundo. Estão obstinados a irem até o fim. Não parece que alimentam algum tipo de esperança contra o vulcão.
    O fim do mundo pode não ser gigante, mas um fenômeno comezinho, invadindo a janela dos fundos do quarto de visita até encobrir o topo de duas cabeças. O mundo que eles conhecem acabará com data marcada e transmitem seus últimos dias sem nenhuma apreensão aparente.

    Um casal nas Ilhas Fiji espera pela lava de um vulcão que engolirá a casa, a cama, as promessas, as xícaras, as confidências, os roupões de banho, os arrependimentos, as hortaliças, os sonhos, as alpargatas, o passeio de gôndola em Veneza na lua de mel, o cachorro e três pulmões
    Um casal nas Ilhas Fiji resiste à mudança, a qual chama de fuga, e segura o cotidiano de um mundo inteiro; Adão e Eva ao contrário. Depois deles não sei o que sobrará para uma bíblia futura. O armagedon nas Ilhas Fiji é uma previsão científica, atravessada pela inesperada decisão dos últimos dois que se declaram ilha. Os pratos ficarão na pia e o último pôr do sol eles assistirão de mãos dadas — como estiveram, quando dividiam a mesma poltrona, na transmissão do telejornal que eu assistia, enquanto tomava o meu café — com o cão deitado aos seus pés, até que o fogo anuncie o fim.



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