segunda-feira, 15 de maio de 2023

A quinta testemunha

    Troca de lado o arranjo do cabelo, mas ele ainda não parece seguro; acha melhor tirar. Talvez esteja exagerado, nunca usou nada parecido antes e nem sabe se colocou os grampos de uma maneira que eles fiquem presos pelo tempo necessário — do qual não tem nenhuma estimativa muito clara. Resolve soltá-lo, ajeita-o com um resto de óleo capilar, cujo frasco já está virado para facilitar a saída do líquido. Passa um pouco de blush nas maçãs do rosto e o batom preferido nos lábios. Uma última olhada no espelho e avisa que vai pedir o carro no aplicativo, que é para que os meninos já se perfilem próximos à porta de saída.
    Pede o carro e confere se todas as janelas estão fechadas, se na válvula do gás não formou espuma, com o pouco de sabão que colocou — porque na noite passada teve que apertá-la, depois de sentir um cheiro forte vindo da cozinha — e aproveita para fechar o registro do chuveiro, que não parou de pingar desde que o último a tomar banho abriu a porta. 

    Desde que mudei meu itinerário de corrida, passo todos os dias em frente ao cartório. Com sua porta larga, com esquadrias douradas, ladeado por um hortifruti e um botequim. 
    Sou testemunha involuntária das filas de espera. Do outro lado da rua, sabemos pouco sobre as expectativas ou negócios de cada um na fila.. Mas há algo indisfarçável ou que muitos desejam que o seja. Os casamentos são mais fáceis de detectar a muitos quilômetros de distância. Pelo clima amistoso entre as testemunhas, pelos olhares e sorrisos distribuídos sem parcimônia e, muitas vezes, pelas roupas; pelos papéis socialmente estabelecidos, cujas representações permeiam os imaginários.
    Entre os homens é mais difícil diferenciar os noivos das testemunhas. As roupas, muitas vezes se assemelham e os semblantes também são mais carregados de mistério. Mas entre as mulheres não. Mesmo as que não optam pelo traje branco, é fácil identificar a mulher mais arrumada do que as outras, mais entusiasmada ou apreensiva; em geral, as outras mulheres rodeiam a noiva.

    Algumas se vestem de branco, seja isso o usual ou não. No caso dos cartórios, não parece ser tão comum entre aquelas que têm a oportunidade de uma cerimônia religiosa ou festa de bodas. Mas para outras tantas, esse será o único ritual público. Burocrático; sem espaços para canções de filme, a nona sinfonia de Beethoven ou para as quatro estações de Vivaldi, declamação de poemas ou um solo de piano, flauta ou saxofone. Sem damas de honra com cestos de pétalas de flores, pajens angelicais de gravata borboleta e tudo mais que o imaginário ocidental alimenta. 
    Mas são essas que se vestem de  branco  que eu identifico facilmente na fila. São as que chamam a atenção de outros transeuntes, além de mim e as que têm mais chances de ganhar alguma solidariedade dos trabalhadores de rua com os seus carrinhos, que passam por elas com mais destreza e cuidado. Ganham uma espécie de mesura a qual só a realeza ainda atrai.

    É manhã de segunda-feira e duas mulheres de vestidos brancos se posicionam à porta do cartório. Dois vestidos curtos, menos pomposos do que aqueles que frequentam as igrejas ou salões de casamentos. Uma das mulheres, além do vestido tem um casaco de moletom roxo sobre os ombros — que deve tirar para posar para as fotos —  no termômetro do relógio da praça crava oito graus. Os homens na fila estão todos de camisas de manga comprida ou jaquetas. Só as mulheres estão com as pernas de fora. E algumas mantém os braços à mostra, porque não querem ferir o estilo.
Essa também é uma marca entre os dois gêneros. Os vestidos as deixam mais vulneráveis às intempéries.

     A que não está com o casaco parece familiar. O vestido eu reconheço. Parece o mesmo de uma semana atrás. Mesmo horário, mesmo cabelo solto, ondulado, brilhante, sobre os ombros. O tecido de renda das costas é o que marcou a minha lembrança. São flores de renda recortadas no decote. Não são muito delicadas, parecem um pouco grosseiras até.
    Mas desenham as costas, que ela exibe com orgulho, de um jeito bonito, quase sensual. Não me lembro de nenhuma outra pessoa que a acompanha, mas o vestido e o cabelo estou certa de já tê-los visto há poucos dias.
    Do outro lado da rua, começo a imaginar o porquê de duas vezes tão próximas no mesmo cartório com o mesmo vestido.

     Possivelmente algum imprevisto. Alguma testemunha que não compareceu, algum documento que não ficou pronto a tempo ou uma taxa cujo comprovante foi perdido.
    E ela, de novo, cabelo ajeitado, vestido passado e arrumado com esmero. Enquanto eu busco o seu rosto, ela procura qualquer sinal de aprovação, orgulho ou felicitação nos olhares próximos. Uma mulher às nove da manhã na fila do cartório, segurando timidamente um buquê discreto — com as mãos abaixadas, quase nas costas — de flores murchas e o seu batom brilhante. Mas estão todos muito ocupados ou distraídos para qualquer elogio. 
    Penso em atravessar a rua e dizer qualquer coisa. Elogiar o vestido, desejar felicidade, perguntar que flores são aquelas que ela segura um pouco envergonhada. 
    Atravesso, mas não falo nada. Atravesso e busco o olhar dela mais profundamente. Atravesso e quando ela me olha, sorrio como os trabalhadores com os carrinhos, sem invadir ou macular o espaço que é dela. Sorrio e espero que ela entenda que é o meu elogio.

    Entre a primeira vez e essa, algumas coisas, talvez, tenham mudado, mas as rosas na renda do decote, as mechas de cabelo  perfeitamente penteadas são as mesmas.
    Casamento de cartório parece menos romantizado. Porque pode ser um papel assinado para colocar o parceiro como dependente no plano de saúde ou para facilitar o financiamento de um apartamento ou se fixar em um país ou, até, para garantir pensão ou herança. Mas faz frio, a noiva está de vestido branco e decotado e tem um ramalhete de flores nas mãos; o qual ela levanta, depois que eu passo por ela.
    Entre o mercado de frutas e o botequim mais popular, uma noiva espera pela segunda vez. Entre os gritos de dois meninos pequenos e dois homens, sem nenhum ser mais noivo do que outro, uma mulher já brilha em busca de algo para além do papel. Entre tomates, bananas, hortaliças e alcoólatras uma mulher aguarda pela assinatura do companheiro, para serem mais família do que já são. 
    Antes das dez, talvez, já tenha tirado os sapatos, prendido o cabelo e começado a preparar o almoço, que é para os meninos não se atrasarem para a escola. Um sonho acalentado por uma década, alguns meses ou uma semana que se realiza hoje, quando troca de mão o buquê para pegar a caneta e assinar a sua festa. 
    Confere o botijão e liga o gás. Uma das trempes não funciona, mas não reclama porque hoje é a mulher que se casou.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 16 Junho 2023

Prezada Amanda,
A Fada Madrinha das noivas da fila de espera

Fio emocionado ao ler a candura com a qual traduz ao leitor que a noiva está só - habita uma bolha que a coloca numa jornada psíquica, de uma profundidade imaterial e antropológica que resgata seu passado e as figuras humanas que exerceram papéis decisivos na efetivação dos seus sonhos.

Fantástica sua leitura. Trás Beethoven com a pauta da Alegria e da Liberdade, inclusas na 9ª Sinfonia. Sensacional, apaixonante!

Gostei muito!

Amanda Machado disse...

Minas Geraes, 19 de junho de 2023

Caro Paulo,
a noiva sempre está só, mas tenta não estar. A noiva, assim como nós, se arruma para o grande dia, quantas vezes ele parecer se aproximar.

Que bom que gostou! Fico feliz e também emocionada por agradar ao grande leitor que é.

Abraços,
Amanda Machado