segunda-feira, 12 de junho de 2023

Cansada de trocar as flores dos vasos da sala que ninguém visita

    Cansada de juntar os potes de maionese vazios e organizá-los em prateleiras. Cansada de consumir toda a maionese, tirar o rótulo do vidro com água quente e pasta de limpeza, secar com um pano de prato de algodão até, finalmente, escolher um lugar.
    Cansada de enfileirar potes, quando não sei se mais alguém o faz. E de não ter um dia sequer em que eu me levante e não me preocupe com os potes de maionese que eu preciso enfileirar.
    Cansada de ir ao supermercado duas vezes por mês e escolher a maionese pelo pote; e nem mais ter apetite pela maionese, mas precisar tanto dos potes vazios. 
    Cansada de deslizar a minha mão pela superfície de cada pote e admirar solitária a minha coleção. Cansada de ocupar todos os espaços vazios com os potes ou a ideia de juntar os potes. Cansada de antes de me deitar, acender as luzes para que os potes não fiquem sozinhos no escuro. Farta de juntar potes de maionese vazios.

     Exaurida de me sentir responsável por olhar a lua todas as noites; sem exceção. Exaurida de nunca fechar as janelas sem contemplar, por alguns minutos, a lua de cada uma das janelas que eu sozinha abro e fecho. Exaurida de responsabilizar os meus olhos pela tarefa que eu nem sei se deveria ser minha. 
    Exaurida de me cercar da certeza de que se, no dia seguinte, alguém me perguntar pela lua, eu vou saber exatamente o seu estado na noite passada. Exaurida de tomar conta do maior satélite natural de que se tem notícia e não ter correspondentes na Nasa que me mandem descansar uma noite. 
    Exaurida de ter meus olhos pregados ao céu todas as noites mesmo que a terra desabe sob os meus pés. Exaurida de ter mais intimidade com um astro longínquo do que com qualquer um que bata à minha porta. Exaurida pelo medo de fechar os olhos, por distração ou cansaço, numa noite qualquer e ela nunca mais voltar. Cheia de carregar a existência da lua e precarizar a minha.
 
    Fatigada de trocar as flores dos vasos da sala que ninguém visita. Fatigada de cuidar dos canteiros no jardim, de esculpir os vasos, de compor as cores das flores num arranjo e saber que ninguém verá a beleza na mesa de centro da sala hoje. Fatigada de espetar as mãos nos espinhos dos caules, de tirar as ervas daninhas da terra, de cuidar para que as pragas não matem as flores e saber que ninguém mais olhará as flores nos vasos distribuídos pela sala. 
    Fatigada de todos os dias me certificar de substituir flores murchas por novas, água antiga por fresca, vasos trincados por outros lisos. E, mais, fatigada de não saber a quem pedir se já posso parar, se devo trocar as flores só quando ouvir a campainha ou se devo permanecer no mistério das visitas que nunca chegam. Abatida e com flores frescas nos vasos todos os dias. 

    Exausta de limpar os vidros do quarto dos fundos, onde ninguém nunca dormiu e talvez nem vá. Exausta de passar um pano seco para tirar a poeira, de molhar uma espoja macia na água e borrifar o detergente de coco antes de esfregar, puxar com o rodinho a espuma e passar o pano molhado duas vezes ou até sair todo o detergente dos vidros. Exausta de limpar as janelas por onde ninguém olha nada; nem o gato, que só chega até à porta e desiste do cômodo dos fundos. 
    Exausta de diluir o detergente na água, nas medidas exatas que eu só descobri depois de muita prática. Exausta de comprar esponjas macias e torcer os panos para que ninguém veja através dos vidros que eu limpo diariamente. Moída de cuidar de vidros de um quarto que ninguém mais sabe onde fica.
 
    Esgotada de escovar os pelos e lustrar os cascos do cavalo cujos relinchos só eu ouço. Esgotada demais de triturar o capim, de aplicar vermífugos, de acalmar o cavalo, sobressaltado pelos trovões, em dias de chuva que são quase todos. Esgotada de amar um cavalo que ninguém procura, de nunca subir no dorso equino para manter o som pacífico no estábulo pelo qual ninguém mais se interessa. 
    Esgotada de fazer tranças na crina do cavalo, de cuidar das suas feridas, de nunca deixar que a lama ou os pingos da chuva maculem sua exuberância. Esgotada de ter um cavalo e não ter a quem confiá-lo por algumas horas. Esgotada de ir até o estábulo antes do café da manhã e depois do almoço diariamente. Farta de manter uma beleza inabalável que ninguém escuta.

    Extenuada de ainda manter o fogo da chama de uma única vela. De não escutar mais as orações, súplicas ou cantos religiosos, mas ainda assim não deixar o fogo se apagar. Extenuada da persistência divina em ombros tão humanos. Extenuada da fé no fogo; da espera pelo arrebatamento que talvez nunca venha. 
    Extenuada de cuidar da chama; dia e noite, na luz e na sombra. Extenuada de fugir dos ventos, de evitar os temporais e temer a extinção do oxigênio. Extenuada de abrigar uma pequena vela para salvar o mundo. E se a vela apaga e o mundo acaba? Extenuada de não ter auto-redenção. Amuada pelo fogo que não derrete a culpa.
 
    E se eu não mais juntar os potes, olhar a lua, trocar as flores, lavar os vidros, cuidar do cavalo e manter o fogo? E se eu pedir ajuda, demissão, desquite, carta de liberdade, declaração de desistência e não mantiver mais em fileira os potes? 
    E se, de repente, eu descubro que o céu continuará o mesmo se eu dormir sem olhar a lua hoje? E se o cavalo que relincha não puder ser ouvido por mais ninguém, terei eu responsabilidade por uma vida invisível? E se o gato não entra no quarto dos fundos porque sabe que eu posso mantê-lo sozinha? E se as flores não salvarem a sala da indiferença, mas o jardim mantiver um pouco de solo nos chinelos que eu uso e isso me atar ao mundo? Como saber se o cansaço me aparta ou me aproxima da vida?
    Amanhã vou ao supermercado escolher potes de maionese. 
 




2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 15 junho 2023

Prezada Amanda
Maestra das vicissitudes femininas

Nunca me canso de ler o que traduz da vida. É isto aí

Amanda Machado disse...

Minas Geraes, 15 de junho de 2023

Caro Paulo,
Leitor/ Interlocutor gentil cujas boas observações transcendem ao seu próprio reino

Obrigada por vir!
Amanda