segunda-feira, 17 de julho de 2023

Aqui, você encontra as melhores pessoas

    Há lugares que nos afastam do que somos, há lugares que nos fazem reencontrar com que achávamos estar perdido. Há agora esse lugar que reafirma o que eu nunca deixei de ser. 
    O cheiro do pastel frito, da espuma do sabão em pó que os trabalhadores dos comércios jogam na calçadas logo depois de abrirem as portas de metal sanfonadas. O cheiro do café nos copos americanos que os motoristas de ônibus viram em três grandes goles, enquanto os passageiros embarcam. O cheiro da cerveja da noite anterior e o da cachaça nesta manhã; o da loção da barbearia, separada da loteria apenas por um madeirite rosa; o cheiro do madeirite também deve estar lá. O cheiro das cascas de mexerica na lixeira, da ração para cães, exposta em um pacote grande na entrada da loja veterinária. O cheiro inconfundível da pomada para congestão nasal, do álcool que desinfeta a seringa da injeção e dos cremes para cabelos em grandes potes nas prateleiras próximas à porta da farmácia.

    Uma mulher carrega o filho pequeno e uma bolsa com tudo o que precisarão para o dia inteiro fora de casa, uma senhora tem nas duas mãos sacolas com exames médicos — ou reaproveita as embalagens, cujos logotipos são identificáveis desde longe, com outros papéis também importantes — um homem aperta um lenço na boca, quase sinto o cheiro de óxido de zinco do curativo que ele acaba de fazer no dentista, cujo consultório tem na porta seu nome escrito em letras garrafais, descascando aos poucos e o sobrenome tem a última sílaba ocultada por uma trava de segurança recém-instalada.
    Dos ônibus, descem uma profusão de humanos cujos rostos são muito diferentes daqueles que as redes sociais me impõe a cada nova visualização. São rostos mais diversos, com ângulos mais raros e peles cujas texturas dão vivacidade e perspectivas muito mais interessantes. São cabelos, corpos e olhares únicos; não se parecem entre si ou com os rostos do feed infinito da pequena tela que aprisiona.
 
    Nesta parte da cidade, há a vida da qual tentamos nos afastar a cada novo certificado, sacolas de lojas sofisticadas, ascensão profissional e cinco dias em Buenos Aires, divididos em dez vezes no cartão. São atendentes de lojas, trabalhadoras domésticas, professoras, auxiliares de enfermagem, acompanhantes de convalescentes em hospitais — que foram em casa tomar um banho mais longo e buscar meias limpas, enquanto alguém da família do doente envia repetidas mensagens para saber se demora — operários da construção civil, crianças com pequenas mochilas coloridas abarrotadas de itens de higiene e lembranças de casa que servirão de acolhimento na hora do sono, depois do almoço nas creches, onde não têm a mãe, segurando a mão ou a voz do irmão mais velho no corredor entre a sala e o quarto onde dorme, quando está em casa. 
    Na calçada, os fiscais das empresas de ônibus comentam sobre as partidas de futebol, ironizam o desempenho de algum astro e criticam a contratação de algum nome conhecido, enquanto tomam notas nos seus bloquinhos, apressam os motoristas e orientam os cobradores. 
 
    Testemunhas de um casamento descem do ônibus com suas roupas muito bem passadas, brilhantes e os rostos polidos por alguma base ou hidratante, noivos e pais dos noivos, filhos dos noivos também desembarcam no ponto, que é, também, próximo de um cartório. As noivas não estão sempre de branco, tampouco parecem tão etéreas como as fotos que vi de alguma desconhecida que pululavam no meu quarto até há pouco.
    Os cartazes de promoção são escritos à mão e os autores podem ser vistos enquanto realizam a sua obra em um pedaço do balcão de atendimento. Um homem-placa, vestido de coração, distribui panfletos aos motoristas no semáforo em frente ao hemocentro da cidade; nem a mais avançada técnica de publicidade conseguiu aniquilar o homem-placa.
 
    Em frente à banca de jornais, cuja chamada inscrita em um cartaz também escrito à mão é "Aqui, você encontra as melhores revistas", um homem com carrinho de supermercado repleto de objetos domésticos, está deitado no chão, sorridente e orgulhoso, enquanto aponta um celular para a cadela cuja postura tantas vezes admirei, quando ela estava na parte mais alta da montanha de coisas no carrinho. A cadela é um ícone da elegância nesse quarteirão. Frequentemente a vejo com a cabeça erguida e uma postura irretocável, como uma espécie de musa egípcia — ou o que eu entendo sobre o que é ser uma musa egípcia — no carrinho daquele que parece ser seu dono. 
    Agora, ele se estica no chão, à procura de um ângulo que favoreça a sua musa e esse empenho de fotógrafo logo me remete ao Blow Up do Antonioni.  Mas Antonioni, aqui? Antonioni no Centro comercial de uma cidade do interior? Não, não é Antonioni.
     
     Às sete da manhã de uma sexta-feira, um homem de articulações flexíveis se estica e se esforça para registrar a imagem da sua companhia mais frequente. Passo por ambos e sinto a efervescência desse orgulho meio paterno que decide eternizar uma imagem do amor. A cadela está brilhante no meio da calçada, ninguém se atreve a invadir o seu espaço de exibição. O homem fotografa e acho que deixa verter algumas lágrimas.
     Minutos depois, é a vez dela, sentada ao lado do carrinho do seu dono, admirar a sequência de malabarismos que ele executa diariamente com bolinhas amarelas no semáforo paralelo ao do homem vestido de coração. 
    Os mesmos olhos da cadela e do malabarista, são os das crianças de mochilas coloridas com as mães sonolentas nos ônibus e os dos pais com as noivas na porta do cartório; presumo.

    Não é o cheiro de champagne, chocolates, chás de menta e tudo mais que eu conheci ou conhecerei um dia. Proust tem as madeleines, eu tenho um lugar no amor.
    Então o homem do carrinho de supermercado, atulhado com frigideira, molho de chaves, peças de roupas coloridas e bolinhas amarelas se apresenta para sua companhia mais terna todos os dias, as calçadas terão espumas perfumadas todas as manhãs e as melhores revistas eu sei onde procurar;  esse lugar é amor. E eu posso sempre voltar a ele, caso um dia me escape.
 



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