segunda-feira, 24 de julho de 2023

O escafandrista da lavanderia

   São quase dez da noite, está muito frio e enquanto deixo o meu chá em infusão em cima da mesa, me lanço — com a coragem que me faltou durante o dia — à limpeza da louça acumulada por toda a tarde de sábado. 
    Há três meses, vir até a cozinha e fazer qualquer coisa é um ritual precedido por silêncio e um planejamento para que requisite mais do meu tempo entre pia, tanque e fogão. Já não ouço as músicas favoritas, os áudios de mensagens recebidas ou qualquer novidade dos podcasts habituais, enquanto me cerco das atividades domésticas neste espaço da casa,  porque tenho aprendido muito neste último trimestre, desde que passei a ouvir sons mais próximos.

    — Manhê, você tá brava?
    — Não. Só estou cansada. Por que acha isso?
    — Porque não tem cara de sorriso.
    Acho que ela olha para ele e finalmente sorri — porque a entonação muda imediatamente, para algo mais amigável — enquanto explica:
    — Quando estamos cansados também esquecemos de sorrir.
    Ela liga a máquina de lavar e eu não ouço mais o diálogo. Agora, há sempre essas conversas nos fundos do meu apartamento, entrecortadas pelos barulhos da máquina, do liquidificador ou do micro-ondas. A interrupção é sempre deles ou de algum outro vizinho, porque enquanto os ouço permaneço imóvel e atenta. Chego quase a calar a minha própria respiração na tentativa de perder o mínimo possível.
 
    Ele pergunta o tempo todo e ela soa muito sincera; parecem dois colegas de quarto na universidade, ele o calouro e ela a veterana, explicando os processos burocráticos, os espaços que parecem intimidadores, apresentando a cultura local. Desde onde comprar o ticket do restaurante universitário até o que fazer quando um determinado professor tecer comentários pouco lisonjeiros sobre um trabalho.
    Mas ele tem cinco anos anos e ela, talvez, trinta e cinco de vida. Só se separam quando ela vai para o trabalho e o deixa na escola; quando se reencontram, os diálogos ecoam inusitadamente filosóficos, intercalando dinossauros roxos e o que os humanos vieram fazer na Terra; se existe Deus mesmo e porque refrigerante não hidrata se é líquido também. 
    Tudo é passível de pergunta, quase nenhuma delas é respondida à queima roupa. Na lavanderia do apartamento dos fundos, as perguntas quaram tal qual as roupas brancas que a avó colocava no sol antes do enxágue; sem pressa. Sol e tempo no gramado.
 
    — Manhê, tá cansada?
    — Não. Hoje eu estou triste. 
    Não ouço outra pergunta dele, acho que ela deve estar evidente na fisionomia infantil, porque ela emenda:
    — Não tem nenhum motivo especial. Sabe quando você acorda com um vazio bem lá dentro e tem vontade de chorar na sua cama, enroladinho no cobertor e me chama para ficar do seu lado? Hoje eu estou assim. 
    Acho que ele a abraça e ela chora, no intervalo do diálogo nenhum eletrodoméstico, há só um silêncio longo, que o menino dissolve com um convite:
    — Vá para a sua cama então, mãe!
    A máquina de lavar é ligada e eu não escuto o desfecho. Não sei se ela foi para cama e ficou enrolada no cobertor, enquanto ele acariciava o seu cabelo ou se ela continuou as atividades domésticas sem tempo para buraco no peito, que ele parece já conhecer.
    Para ele, não é arriscado perguntar; perguntar faz parte. Para ela, sinceridade é um pacto entre íntimos; o que eu também almejo. 
 
    Aos domingos as conversas se estendem por mais tempo e me possibilitam mergulhar secretamente com eles. Ela lava mais roupas, enquanto ele entrega os pregadores e faz perguntas. Ontem, ele contou que o seu melhor amigo disse que não gosta mais dele. A mãe perguntou sobre as outras duas amigas, ele disse que continuavam gostando dele, mas que quem mais o interessa, quem sempre foi mais legal e amigo não quer saber dele. Contou que uma das amigas o aconselhou não correr atrás, retribuir com desdém, mas isso doía e não era o que ele queria. Perguntou se ela podia intervir com a mãe dele, se podia ligar para ela ou mandar uma mensagem. 
    Eu picava pepinos para uma salada, mas estava atenta ao problema do calouro do apartamento dos fundos; mais, estava ansiosa pela resolução que encontrariam. Mas a veterana não é de respostas curtas, tampouco aceitou ser a interventora na amizade abalada. Chamou-o de querido, enquanto dizia que podemos sim amar quem não nos ama, mas em silêncio. Não forçar o amor. 
    — Porque um dia ele apaga ou se acostuma aí dentro.
    Foi o que ela sugeriu. Não sei se ele entendeu, tampouco se ela própria reagiria assim em uma negativa tão dura. Talvez ambos se façam mais nas perguntas do que nas respostas.

    É uma vida comum narrada; cheia de especificidades, é claro, mas também com muitas nuances universais;comungo com algumas delas.
     Na lavanderia, dois tentam entender o mundo, pendurar seus sentimentos, arejar soluções e sacudir as aflições diárias, entre corridas de carrinhos de brinquedo, amaciantes de roupas e vazios que invadem dentro.
     Lavo a louça quase sempre à noite, deixo que acumulem para que eu tenha acesso a esse repertório sensível dos vizinhos, às profundidades que eu só ilumino encorajada pela voz dele; um escafandrista na lavanderia vizinha. Audível mais pelo coração do que pelos tímpanos.
     
    Ele tenta levar à mãe, mergulhada em compromissos, responsabilidades, contas e audiências familiares no tribunal, à uma superfície de ternura e simplicidade; ele a puxa pelo punho e traz consigo a vizinha que admira muito tudo o que é terno e verdadeiro; os bons sons que vêm dos fundos do prédio.  
    Hoje não vieram. Ele está de férias e talvez tenham viajado. São quase onze da noite de uma segunda-feira e faz muito frio, queria que as perguntas do escafandrista atravessassem a parede e me fizessem companhia, agora, enquanto espero a roupa centrifugar para pendurá-las no meu varal.




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