São quinze minutos de carro e, se tiver sorte, uma fila de dez minutos para o pedido e mais cinco no
caixa. Se fosse só assar o peixe, mas antes tenho que limpá-lo, antes disso tenho que ir à peixaria e negociar o mais fresco, pesado — mas não demasiado — e, na esperança primeira, de encontrar um que o meu dinheiro possa comprar. Morar afastada do litoral tem dessas coisas.
caixa. Se fosse só assar o peixe, mas antes tenho que limpá-lo, antes disso tenho que ir à peixaria e negociar o mais fresco, pesado — mas não demasiado — e, na esperança primeira, de encontrar um que o meu dinheiro possa comprar. Morar afastada do litoral tem dessas coisas.
O homem para o carro e eu preferia cancelar a viagem, tudo por causa de um adesivo no vidro traseiro. Achei que estivéssemos melhores agora, mas me lembro que andamos em bolhas ainda. Entro no carro um pouco a contragosto, um pouco condescendente. Se fosse só uma eleição, mas são séculos de colonialismo. E eu só queria um peixe para o almoço.
Se fosse só aprender e ensinar as letras, como códigos universais. Como ler bulas de remédios, manuais de instruções, comunicados e avisos. Saber quem chega, a que horas e estar preparado a tempo ou que foi embora e o porquê; saber de quanto em quanto tempo administrar o medicamento e, por curiosidade, as reações adversas — ainda que seja uma possibilidade em um milhão.
Mas inventamos de gostar de literatura, de interpretar a mensagem, de ler o que nela não está e de ignorar até o que estiver em caixa alta, com explicação pormenorizada entre vírgulas. Um dia Austen, noutro Dostoiévski e nunca mais a perspectiva voltou ao lugar de origem ou a alma coube entre as mesmas paredes inertes.
Se fosse só morrer de amor, mas antes tem os impostos que não declaramos, as eleições as quais precisamos justificar a ausência — mais ainda a justificativa afetiva para o antigo amigo do grêmio estudantil —, os atestados médicos para cada falta, os argumentos bem fundamentados para cada desistência e os escândalos que devemos evitar protagonizar para ficarmos na poltrona confortável do julgamento.
Exercitar o corpo, consumir as vitaminas certas na medida exata, abordar os traumas somente nas sessões de análise, não varrer o lixo para debaixo do tapete, reciclar embalagens e consumir o mínimo de produtos industrializados. Ir às festas de família, frequentar os almoços e jantares, ouvir as barbaridades das vozes domésticas e devolver a feição Monalisa, recurso tão antigo quanto o primeiro nome da árvore genealógica.
Se fosse só fazer as pazes com a irmã, mas antes temos que passar por cima da nossa dignidade, perdoar pelo flerte roubado ou pelo consumado — este último no qual não tínhamos interesse, mas de péssimo gosto — ignorar as injustiças paternas, as preferências maternas e as conspirações fraternais.
Se fosse só atravessar a rua e tocar a campainha da casa da irmã, mas antes tem um oceano, algumas avenidas, milhares de ruas e em cada uma delas uma placa com a inscrição da promessa de nunca mais. Se fosse só um abraço no natal, mas antes tem a competição que não acabou ainda, as divergências de opiniões, cartelas de cores e contribuições para as despesas dos pais que já estão mais velhos do que imaginávamos que ficariam um dia.
Se fosse só um beijo de boa-noite, mas tem o patriarcado que coloca uma armadilha a cada metro de aproximação nossa, que escava buracos para que não saíamos inteiras deles, que cobre com areia movediça cada fenda das nossas pontes.
Se fosse só somar as rendas e alugar um apartamento perto de alguma praça da qual gostamos, mas antes tem os históricos familiares e amorosos; as disponibilidades e as resistências. Se fosse só gostar do cinema francês ou húngaro, aprender o idioma estrangeiro, mas antes tem a projeção e a identificação; o ego, o id e o superego.
Se fosse só gostar de cães ou de gatos, mas teve a namorada tóxica e o amante violento; teve uma ameaça ou só um espetáculo ridículo em público. Teve aquele desfecho com boletim de ocorrência ou roupas jogadas pela janela.
Se fosse só um pedido e um sim, mas, antes, tem um que não tem medo de abismos e o outro, que mesmo sem nunca ter saltado não abre mão do paraquedas. E ambos alugam um apartamento perto da praça da qual gostaram e vivem por lá até a queda da última árvore ou no primeiro grito do vendedor de algodão doce.
Se fosse só deixar que o destino conduzisse, que um signo da astrologia resolvesse cada vocação; se fossem inscritos em pedra os caminhos de cada um, mas tem os peixes que escolhemos comer em um almoço, os carros que preferíamos evitar, os livros que nos modificam profundamente, as eleições que todos os dias nos cobram presença, os traumas, os laços familiares, as bodas para as quais nem requisitaram o nosso aval, os apartamentos e as praças, os sonhos e as paixões, os estrangeiros que aprendem uma língua porque querem ler um amor.
Se fosse um corretor de imóveis que não só indicasse a melhor localização com valor acessível, mas, também, se gato ou cachorro, se Bèla Tarr ou Alain Resnais, se trauma ou cura; se abismo ou pequenos abalos sísmicos.
Por sorte, quando entro no carro com o adesivo no para-brisa traseiro, não sou interpelada pelo motorista, que vai silencioso e concentrado até o ponto final.
São cinco minutos na fila e um atum viçoso de dois quilos e trezentos gramas se acomoda no meu colo. Por sorte tenho uma irmã com a qual não preciso fazer as pazes e nenhuma praça com a qual eu tenha me encantado, por ora. Dos abismos pelos quais sou seduzida, a complexidade da vida ainda é o maior deles.
Nenhum comentário:
Postar um comentário