A mulher de mil espelhos não tem uma roupa preferida, não espera o homem do gás chamar, não adoça a voz para falar com o frentista. A mulher de mil espelhos não tem hora para voltar, não se inspira no ilusório, não tem máscaras para guardar. A mulher de mil espelhos se levanta antes do sol, lava as roupas da semana e ouve os jornais diários enquanto toma o café que ela mesma coa.
A mulher de mil intertextos usa pena, usa pincel, tem um teclado com letras apagadas e máquina fotográfica antiga. A mulher de mil intertextos olha para o filho e vê a sua mãe, não tem o nome do pai na certidão e, por isso, assume a própria paternidade, mas não sem conflitos. A mulher de mil intertextos deixa um recado na secretária do dentista, que parece um poema e escreve um soneto, que parece uma denúncia. A mulher de mil intertextos se lembra de um filme, enquanto dança e escuta notas musicais, enquanto lê; a mulher de mil intertextos nunca está só.
A mulher de mil senões não desvia do cachorro de rua que só quer brincar, não transporta amarguras nos bolsos nem aceita caber no sonho que não é dela. A mulher de mil senões não aduba terra improdutiva e só invade onde puder cultivar. A mulher de mil senões encontra a mulher de mil perdões, em um café, e ambas discutem a quem mesmo devem oferecer segundas chances.
A mulher de mil perdões não é esquecida, tampouco é estúpida, só não exige a perfeição da coerência a qualquer custo. A mulher de mil perdões abriga a mulher de mil senões, mesmo quando discordam de qualquer coisa. A mulher de mil senões sempre está pronta para acenar para mulher de mil perdões.
A mulher de mil armaduras estende a mão ao vazio, mergulha no rio do qual não conhece a profundidade, sem medo de enferrujar, e é frequentemente ferida onde o traje não alcança.
A mulher de mil armaduras não parece pesar, embora cada roupa completa tenha mais de vinte quilos, não leva escudo, não desembainha a espada porque é pacífica desde o seu nascimento. A mulher de mil armaduras dança o seu balé, é autora dos seus próprios hinos e tem mil bandeiras, mas não obriga nenhum exército a hasteá-las.
A mulher de mil armaduras come com o prato na mão, porque nunca é convidada para a mesa de jantar. A mulher de mil armaduras se levanta antes de todos na casa e é sempre a última a se deitar; quase ninguém conhece os seus cabelos, mas a sua voz é ouvida até no outro continente. A mulher de mil armaduras tem na voz a sua arma mais potente.
A mulher de mil corações já remedou quinhentos e aposta diariamente a outra metade, porque não recorre à segurança de um banco de antecedentes para poupar os ventrículos. A mulher de mil corações tem afetos múltiplos e ternuras intermináveis por tudo o que é comezinho e insignificante; tem um inventário próprio de estimas que não figuram nas milhões de publicidades da ilha.
A mulher de mil corações entrega sempre uma parte de si sem pedir adiantamentos, não o faz por consignação e não assina contratos.
A mulher de mil corações tem sempre uma raiva a despontar, um ódio secular que não consegue disfarçar e a angústia de quem sente sem cessar. A mulher de mil corações não é só ternura e zelo.
A mulher de mil corações abre o peito dia sim e dia não, mas não cobra ingressos para o espetáculo.
A mulher de mil alforrias se lança à improvável liberdade e anda sempre à margem até alcançar seu regaço sonhado. A mulher de mil alforrias se joga da segurança autoritária para o barco sem velas e sem coletes salva-vidas, o qual ela mesma aprende a remar.
A mulher de mil alforrias não escreve cartas com pedidos singelos aos poderosos, tampouco assina leis que não concebeu, mas traça estratégias para libertar todas as outras que souberem das algemas. A mulher de mil alforrias não agradece à Isabel.
A mulher de mil nomes e nenhum sobrenome não levará o legado de dois mil homens em um Albuquerque, Ferreira ou Silva. A mulher de mil nomes só defenderá os ocultados de todas as histórias, as reais heroínas de qualquer pátria.
A mulher de mil nomes assina todos eles, sem hierarquia ou ordem de preferência; porque não tem medo da sua autoria. A mulher de mil nomes assume as suas mil vozes e dá a elas a amplitude que não tiveram antes. A mulher de mil nomes não se preocupa em ocupar muitos espaços na assinatura, ela escreve no verso da folha, se for preciso. A mulher de mil nomes é do tamanho dos seus muitos nomes.
Para a mulher de mil nomes o alfabeto é restrito, a mulher de mil nomes pode inventar suas próprias sílabas; não necessariamente com uma vogal e uma consoante.
A mulher de mil derrotas não tem mais medo de perder, não leva amuleto da sorte nem consulta os compêndios dos notáveis históricos. A mulher de mil derrotas tem cicatrizes antigas e outras recentes, de cada queda, e muitas memórias de renascimentos. A mulher de mil derrotas não fica muito tempo no chão e se está nele é para pensar em como se levantar.
A mulher de mil derrotas, às vezes, se queixa de estar cansada de lutar; quem ouve a mulher de mil derrotas se não outra mulher? A mulher de mil derrotas não tem espaço nos museus, nos livros, nos bustos das praças; a mulher de mil derrotas quer outros espaços. A mulher de mil derrotas quer ganhar um dia.
A mulher de mil domingos, acompanhada dos seus mil intertextos, depois de um cochilo à tarde, aguarda a segunda-feira, enquanto lustra sua armadura. A mulher de mil domingos se prepara para dormir e para acordar uma mulher de mil segundas-feiras.
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