segunda-feira, 14 de agosto de 2023

A primeira janela que é também a última

    É bastante tarde e faz muito frio quando eu ouço pela primeira vez. Depois do trabalho, a rua vazia e eu não esperava por nada, talvez só chegar em casa com segurança.
    Ali onde a rua é mais íngreme e o meu impulso é mais forte; vontade de chegar em casa, medo da rua escura e dos passos que vêm atrás, algumas vezes. Noite de agosto, cidade silenciosa, a volta depois do cotidiano enfadonho e o cansaço de uma semana que ainda começa. Me preparo para a impulsão da subida, mas há uma casa. A primeira da rua, depois da demolição da que vinha antes. Uma casa que parece mais baixa do que o normal, porque nesta rua, quase toda ela, foi invadida por prédios cada vez mais altos. Mas a casa resiste; baixa, espaçosa e discreta. Sem cores fortes, sem adornos espalhafatosos. Uma casa com uma árvore na frente e fios de energia que poluem a fachada e a deixam ainda mais desvalorizada.
 
      Em todos os dias a casa esteve ali; há alguns anos, quando havia uma outra antes dela, o aquário na sala — ou o que parece ser uma sala — é que roubava a minha atenção. Com a porta aberta e as janelas escancaradas, no verão, a água refletida em azul capturava os meus olhos. Sempre que eu passava por ela era o aquário que eu procurava. Até que veio a música, na última semana. 
    Já ouvi, outras vezes, notas musicais que ecoam da mesma sala do aquário; me lembro de escutar Chorinho, mas não sei quando. Talvez não tenha dado a atenção que merecia ou a rua estivesse mais barulhenta. 
    Mas na última semana, sem ninguém na rua, porque era frio e muito tarde, a música desacelerou meus passos e conteve a minha pressa cotidiana. A única luz acesa, as janelas fechadas e uma peça clássica, na segunda-feira, me lembram de ser ou, ao menos, querer ser outra coisa que não pressa e impulsão na parte íngreme das coisas.
 
    A música do piano parece uma naturalidade, um fenômeno como chuva ou arco-íris; sem esforço, sem dono, sem mãos reconhecíveis que orientam uma trajetória. Por ela desacelero, por causa dela paro na parte mais escura da rua e procuro em outras janelas alguma testemunha, alguém com quem eu possa compartilhar o sublime. 
    — Você também ouviu isso? 
    Mas não há ninguém, não que eu possa ver. É claro que os vizinhos do prédio colado à casa ouvem e, talvez, os do prédio da frente. Não sei se acostumados e, por isso, reclamam da altura, das repetições — caso seja um treino ou ensaio — ou, quem sabe, enrolados em cobertores desfrutam do que eu ouço na rua, tão desprotegida, tão vulnerável ao vento, cerração e escuro.
    Fico de pé em frente à casa, por alguns minutos, penso em me sentar no muro baixo do prédio da frente, mas minhas mãos e lábios congelam. E não sei quando acabará, se a peça terá um fim ou subitamente as mãos pararão e me deixarão com frio e sem final.

    Resolvo subir; só que, agora, mais lentamente. Os passos mais demorados que sou capaz de executar. Todo o esforço para ter mais tempo possível daquela música.
    — Não vou chorar. Isso é certo. Não estou triste, tampouco exausta. Não vou chorar, mas é bonito.
    Passei a parte mais elevada, agora descerei e deixarei a música para trás, penso se é o melhor a fazer. Penso que talvez não tenha outra oportunidade de beleza esta noite. São quase onze de uma terça-feira. 
    A árvore em frente à casa parece me acompanhar, enquanto a música vai sumindo, aos poucos. Essa árvore que já me viu tantas vezes, essa árvore que sabe do meu encantamento pelo aquário, que eu mudei de turno de trabalho muitas vezes e, agora, que não quero abandonar a música.

    Chego à esquina e é inevitável, a poucos metros não terei mais a música; do ipê eu só vejo o topo agora. Preciso seguir, mesmo que não tenha música. Invejo os vizinhos que já estão deitados, aquecidos e continuam a ouvi-la.
    Caminho mais alguns metros, é estranho que eu ainda ouça a música, mesmo tão longe. Viro mais uma esquina e não tem ipê ou aquário, mas o que eu ouvi ainda ecoa em algum lugar que eu não sei precisar. Tiro as chaves da bolsa, abro o portão, caminho pelo hall do prédio e há música sim. Abro a porta de casa e, na sequência, fecho. E é inacreditável que eu ainda escute as notas que me despertaram de um letargia laboral. 
    Vou para o banho, não ligo a TV, tampouco ouço as mensagens no celular, quero deixar o ambiente imperturbável para que a música ainda me alcance, talvez seja esse o segredo.

    É claro que a música não é para mim, não é uma homenagem, um presente ou nada que lembre uma dedicatória, mas é evidente também que ela me acompanha, estaciona em alguma parte que precisava dela. Não penso em quem a toca, não tenho interesse ou curiosidade nenhuma maior que o próprio desejo de mantê-la o máximo de tempo comigo. Sem devoluções, sem negociações, sem custas com direitos autorais ou mensalidade de streaming, só quero que essa surpresa dure o quanto puder, sem litígio. 
    Eu não pedi que ela atravessasse o meu caminho, tampouco pedi que me deixasse passar sem saber dela; eu só escutei, precisei de um tempo para admirar e não nos separamos até eu ir dormir. Não compartilhei com ninguém sobre o encontro, ninguém nos viu; somos eu, o ipê e a música atados a essa casualidade da vida. Choro no banheiro, mas não estou triste.

    Quando vou me deitar, a janela de onde saía a música apaga as luzes e o piano para. O silêncio pousa sobre a minha cama, terei que abrigá-lo de novo. Abro espaço entre as cobertas.
    A primeira janela da rua é a última lembrança do dia. Na página recém-marcada do meu livro, na cabeceira, a autora afirma que ninguém sabia melhor que o tempo passava do que Virgínia Woolf. E essa é música que eu ouço agora; o tempo de Woolf.



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