domingo, 27 de agosto de 2023

Agora que expulsamos todos do Éden

   Agora que todos os outros mundos nos faltaram. Que as outras vozes não nos abalam. Que os únicos quadros que olhamos estão nas mesmas paredes. Que os nossos gritos não alcançam outros incêndios. 
    Agora que nenhuma mão que não seja a minha ou a sua abrirá o portão. Que nenhuma carta conta o que já não sabemos e que remetente e destinatário se intercalam entre nós. 
    Agora que expulsamos todos do éden. Agora que nenhuma flor nesse jardim desabrocha sem o meu olhar ou o seu. Que nenhuma ruína dura muito mais que um dia. Que as pirâmides nos deixam menos boquiabertos do que cada minuto nosso.
 
    Agora que ninguém virá nos salvar, porque não temos telefone de emergência, não pagamos seguros e que trocamos todos os nossos documentos para incluirmos o sobrenome um do outro, ignorando os conselhos. Que acreditamos piamente, que dispensamos o plano b e ignoramos as estatísticas.
    Agora que compramos muitos vasos de plantas e sementes, que não temos mais medo das mortes; que a Amazônia está na nossa sala de estar.

    Agora que nenhum lençol permanece desamassado. Que as noites são tão curtas; que os dias custam a passar. Que os oceanos, os vulcões, os desertos, as chuvas torrenciais parecem menores e menos destrutivos a cada tarde de conversa contigo. Que eu não me sinto atrasada em nada, que tampouco me adianto a qualquer coisa; agora que temos a hora exata, seja ela qual for. 
    Agora que eu não olho para mais ninguém na rua e não espero outro para começarmos o jantar. Que eu não sou mais estrangeira, que o meu idioma coincide quase sempre com o seu; que os meus modos à mesa não surpreendem, que eu não volto para ver se fechei a torneira e se tranquei a porta. Agora que eu pareço fazer parte de algo pela primeira vez; que não estou mais longe, que tenho sempre sapatos com o meu número de pé. 
    Agora que compramos móveis, panelas e xícaras para a casa. Que mantemos a varanda sempre iluminada e varremos todos os dias as folhas do chão.

    Depois que o espelho embaçar pela primeira vez, que o chuveiro queimar bem na vez do outro, que as histórias se tornarem repetitivas e que as cartas forem eventuais até serem completamente escassas.       Depois que o paraíso parecer apertado, previsível e deserto; que as calhas do telhado transbordarem, porque esquecemos de limpá-las. Que as ruínas invadirem a nossa sala amazônica e que os planos b, possibilitarem c e d. Que o Cazaquistão não pareça absurdo e que tenhamos salvo nos nossos aparelhos telefônicos todos os contatos que puderem nos ajudar: gás, água, mãe, colega de trabalho, primos e um advogado indicado por alguém de quem nem nos lembramos mais.

    Depois que as minhas mãos não encontrarem as suas. Que a louça não se acumular mais na pia, porque queremos nos manter ocupados. Que o jardim tenha morrido de solidão e que as avencas da varanda só sobrevivam com água e adubo.
     Depois que no meu carro não tiver mais o seu cheiro. Que o supermercado for o primeiro lugar de descanso, que a sua língua não for mais a mesma que a minha e a minha etiqueta começar a te incomodar, à mesa.
     Depois que os seus molares não forem mais da minha conta, sua mãe, seus pesadelos, seus problemas no trabalho.

    Depois que tivermos que vender os móveis e entregar a casa ao locatário, chorará pelo sofá cinza de três lugares ou pelo sonho esfarelado no chão da cozinha? Depois que a minha voz estiver muito longe, se esforçará para ouvi-la ou para esquecê-la? Depois que o vizinho avisar que me viu chorando de camisola, andando sem destino, vai me buscar de pijama ou trocar de roupa antes que alguém da sua emergência chegue?
    Depois que o meu sobrenome não fizer sentido na sua identidade, irá imediatamente a um cartório ou vai se sentar e respirar antes de decretar esse outro começo? Depois que os cactos morrerem, que ao nosso gato restar uma última vida e que nenhum Éden nos sustente, vai escrever uma derradeira carta ou começar outra sequência delas para não acabar nunca de chegarem?
 
    Não vamos nos preocupar ou devemos nos precaver? Como fazem as outras pessoas quando entram em um bote, depois de rejeitarem o navio? Devemos aprender a nadar já ou devíamos ter aprendido antes do bote? E se nadar não for preciso?
    Como fazem os que abandonam os outros mundos por um só? O retorno é possível ou habitar no próprio e visitar os outros  é o melhor caminho? Como se comportam os outros donos de Ráfias, Antúrios e Begônias? Não queria adiantar o assunto. Talvez não o faça. Talvez pense nisso sozinha, quando você for à padaria.
    Mas caso, um dia, alguém não caiba mais nessa embarcação tão íntima, que não se esqueça da Amazônia com a qual sonhamos um dia e que o último a sair do éden, coloque água na Costela-de-Adão e carregue o gato para um lugar com varanda; essa é a última vida que ele tem agora.



2 comentários:

Anônimo disse...

A vida e seus processos…
Sou tua fã!

Flávia Gomes

Amanda Machado disse...

Também sou sua, Flávia!

Obrigada!😘