segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Todos os amores terminam igual

     Não sei nada sobre os momentos que antecederam a ligação, tampouco como e onde começou; se já ali na porta da loja de telefones na avenida central ou se, exaltada com a conversa, chegara até ali para esbravejar sem paredes. Ela está muito agitada quando eu passo, suspeito, inclusive, que uma gotícula do seu desespero molhou o meu antebraço — só desejo que seja lágrima, me parece mais higiênico e seguro — mas era tanta umidade no rosto vermelho dela que pode ter vindo do nariz ou boca. Era um ódio suculento, uma ira pantanosa. Berros que jorravam água e sal, ondas de um mar revolto. Quem se atrevesse a consolá-la agora, deveria fazê-lo de barco, guarda-chuvas e galochas. Não sei se foi mesmo um fim, como ela anunciou algumas vezes antes de abaixar o telefone e chorar abraçada a si mesma na entrada da loja, ao lado de um boneco inflável de sorriso bobo.  Mas pareceu um indício de fim ou uma necessidade de fim. Para segurança dela, eu penso; para conhecer outra coisa que não seja isso, rogo. 
     Nada vale isso, um telefonema desses, um choro público e descompensação marítima no meio da cidade, numa segunda-feira. 
    Ela parece muito jovem e também me lembro que alguns sentimentos já me levaram a essas tempestades, nunca ao lado de um boneco inflável, nunca com a camiseta de uniforme do trabalho para o qual eu deveria voltar cinco minutos depois de ter derrubado um ancoradouro só com os líquidos que saíssem do meu corpo. Mas ainda assim já me afoguei de mim.
    Ela fica para trás, mas o seu choro segue comigo, não sequei a gotícula do meu braço, tampouco saquei o vidro de álcool da bolsa, como faria meses atrás talvez. Levei o choro como forma de respeito e solidariedade; levei o choro com a esperança que estivesse ajudando a secar um pranto tão nosso. Mas esta não deve ser a derradeira encenação do fim do amor. O fim mesmo me parece muito mais silencioso e discreto; quase imperceptível. Imagino isso, porque todos os amores terminam igual.
 
    Exceto os que parecem terminar, mas só descansam, porque precisam de paz, um lugar para se sentarem e um café, sem perguntas. Então acaba uma temporada, ambas as personagens se despedem, às vezes até harmoniosamente. Combinam de separarem os livros, irem à corretora para pedirem uma cópia do contrato e calcularem os gastos para a entrega do apartamento. 
    Combinam um último evento social, o casamento da irmã dele, porque seriam padrinhos e arranjar alguém, assim de última hora, será mais uma atribulação para os nubentes, que já têm tantas outras. Combinam a guarda compartilhada do cão e a maneira que anunciarão o término para os amigos mais próximos, ainda não sabem se antes do casamento da irmã dele ou no dia seguinte à festa. Então na harmonia dos planos de abandono, recebem, numa manhã no parque, da boca do cão que levaram para um passeio, o amor que achavam ter se deteriorado. O cão deles que não poderia ser repartido, mas já entrava nos acordos finais, desenterra o amor perdido e ninguém mais precisa pensar no tempo para avisar aos íntimos. O amor voltou a pulsar. Todos os amores terminam igual, mas só quando não há um cão que o possa farejar.

    Afora os que descobrem que nem se amavam. E que depois de uma partida, com a distância do campo em uma imagem que pedem para rever, veem dois amando duas projeções que nunca se materializaram. 
    Dois jogadores exaustos, depois de uma prorrogação inesperada, antes de tentarem os pênaltis, se veem no VAR não se amando. Entraram companheiros de time, mas saem de campo adversários em times opostos.         
  Atiçam as torcidas uma contra o outro, convocam entrevistas coletivas e despejam provocações, aprendem coreografias para a comemoração de um gol, só para humilhar o antigo parceiro de jogadas. Ferem pelo abandono, se vingam porque não receberam a bola quando estavam na cara do gol. Odeiam mais quando ouvem o hino antes do jogo e relembram que amaram um jogador que nunca apareceu nos mesmos treinos. Todos os amores terminam igual, mas só se as chuteiras não estiverem bem amarradas.

    Salvo os que sempre exigiram muito mais amor do que desejaram oferecer à outra pessoa. Amores que sempre priorizaram espelhos, que nunca saíram de si, porque não sabem o quanto é interessante lá fora. Amantes mais dos elogios do que olhos de alguém. 
    Mas então, num dia, acordam e acham que o amor acostumado é pouco, por isso rompem para irem atrás de um novo, fresco, com uma diversidade maior de adjetivos no repertório. 
    Seguem como Tuaregues que visitam o oásis e vão embora depois de beberem toda a água, deixando para trás um deserto fraturado. Todos os amores terminam igual, mas só se os desertos sempre são o outro.

    Exceto os amores que terminam na fila da burocracia, com divisão de clipes e sacos de pão e que talvez até germinassem de novo se não fosse a raiva das muitas cláusulas do contrato que nem sabiam que assinaram. 
    Amores que não têm mais paciência, que querem amar sem erros, sem deslizes na língua padrão, sem marcas de café nos móveis preferidos. Amores que não admitem manchas de dedos com manteiga nos livros, que não querem mais as toalhas molhadas em cima da cama, que não suportam as camisetas acumuladas na poltrona do quarto. Que não querem mais esperar ou serem apressados para saírem, que não suportam mais o barulho do outro quando toma café. Todos os amores terminam igual, mas só se o barulho da porta batendo for menos importante que o do próprio coração.
 
    Todos os amores terminam igual, mas nem tanto. Deixar uma moça tão desesperada no meio da própria tempestade, sem planos, sem terra à vista, sem faróis ou olhos cansados demais para os encontrarem é algo comum com o qual eu ainda não me acostumei. 
    A lágrima dela veio no meu braço, o seu abraço abarcando a si não sai da minha memória, começamos a nos consolar desde muito cedo.
    O boneco inflável de sorriso bobo é o interlocutor do outro lado da linha, parecia um mascote pacato, mas aniquilou uma serenidade por alguns minutos. Um dia, ela se lembrará da cena, que eu por acaso testemunhei, e a pipoca que comeu depois da arrebentação fará mais sentido do que qualquer marulho, depois da tempestade. Todos os amores se terminam é porque o mar foi maior.



Nenhum comentário: