domingo, 3 de setembro de 2023

Um iglu não é uma casa vazia

    Um hodômetro não guarda as memórias de um itinerário; só as medidas. Uma bifurcação nem sempre é escolha; às vezes o lado já está determinado na saída. A dois passos do paraíso não significa chegar lá; a duzentos pode ser que chegue. 
    Uma onomatopeia não explica a chuva, não explica as chaves, não explica um choro. Uma onomatopeia só ilustra. Uma onomatopeia é o quadro no texto. 
    Três pratos de trigo para três tigres tristes não resolve a melancolia de ser tigre. "Segunda eu começo" não é uma mentira, é mais uma esperança.  
    Um útero não é uma mulher; mas um útero condiciona o que é ser uma mulher.
 
    Um ventríloquo não é mãe nem dono, mas o próprio boneco. Um ventríloquo simula ser outro para os outros rirem. O ventríloquo só quer ser amado; o ventríloquo  somos nós.
    Um barco na areia não está perdido; uma embarcação à deriva também não. Estar perdido é não ter chão.
    Um homem de bem é um homem que mata, por bem. Uma mulher de bem é uma mulher que se oferece para morrer, por bem. 
    Um útero não é uma casa, um receptáculo ou um vazio à espera; um útero não é propriedade pública.

    Cacos de vidro não desamparam para sempre um aparelho de jantar. Um aparelho de jantar incompleto tem mais histórias do que um com todos os pratos. 
    Um amor que não resiste à noite de domingo não é sempre um erro, mas às vezes é. Um amor que não resiste à noite de domingo pede fast-food e liga a TV para ver se esquece. Um amor que não resiste à noite de domingo é uma solidão infinita.
    Uma mulher sem destino escreve às duas da tarde de um sábado e não está perdida, porque pisa nas palavras que ela mesma tece. Uma mulher que faz o próprio tapete é também uma sobrevivente. Um útero nunca está vazio; um útero não tem paz nem quando sexagenário. Um útero tem muitos juízes. 
 
    O rio de uma vila é mais sagrado do que a igreja secular da vila. Um rio corre independente, um rio mata a sede, limpa os pés e os cabelos, purifica, refresca, irriga a vida. Um rio não excomunga quem com ele não concordar; um rio nunca negará água.
    Um retrovisor avisa sobre o que vem atrás; é o reflexo do que passou, mas ainda ameaça. Um retrovisor adverte sobre o que não apaga. 
    Uma cicatriz nem sempre é resultado de um trauma, mas um trauma sempre produz uma cicatriz; seja ela visível ou não. 
    Um útero é comemorado se produz frutos — mas somente os bons — um útero é comentado exaustivamente se não. 

    Uma bandeira não é um país, um hino não é um país, uma ideologia também não. Mas uma bandeira, um hino e uma ideologia precisam de um país. As leis, as armas, os mercenários não são a guerra. Mas as armas, as leis e os mercenários só  existem em nome do conflito; mesmo que seja pelo seu fim.
    O senhor das armas não está preso. O senhor das armas nunca será alcançado.
    Uma utopia começa e não tem fim; uma utopia é irmã siamesa da esperança; dividem os mesmos alvéolos pulmonares. Uma utopia é útero em gestação permanente sem data para parir.
 
    Uma revolução só é quando não acaba. Uma revolução só é quando nada mais volta a ser como antes; uma revolução precisa de dança e livros; uma revolução está cansada das bombas.
    Uma revolução precisa ter coragem na fadiga e compreensão no medo. Para uma revolução não tem receita; uma revolução não tem reação adversa para vila que reverencia mais ao rio.
    Um útero é revolucionário quando não é violado; um útero que escolhe é um início de uma revolução. 

    Um iglu na Groelândia abriga uma mulher e um homem adultos, três crianças, cujos nomes têm a mesma inicial e um cachorro de doze anos. Um iglu não é quente como uma sauna, tampouco frio como um congelador. Um iglu mantém a temperatura dos corpos que ele abriga ou da fogueira que ele protege.   
    Um iglu é um útero glacial. Um iglu só não é uma casa vazia.


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