A calçada larga, há uma semana, é a casa de alguém que dorme até mais tarde. No caminho da minha corrida diária, ele permanece estático durante as idas e voltas que eu percorro. Eu só conhecia os seus pés e um pouco do contorno do corpo, embalado em um cobertor xadrez colorido. Sua estrutura não é grande, sobra muito ainda da calçada larga.
Há alguns pertences alinhados, do lado de dentro da calçada, pequenas composições estéticas que sugerem gostos, preferências e personalidade, além da utilidade, é claro. Uma mochila quase verde, porque é meio encardida, meio desbotada; uma garrafa pet com tampa azul; uma luminária de cabeceira, sem o fio de energia, sem lâmpada, cuja cúpula tem somente a metade coberta do que parece um pequeníssimo vitral; um baú de madeira, do tamanho de uma caixa de bombons e a caneca amarela.
De todos os itens, a caneca é a mais chamativa e é ela que me leva a pensar mais na condição da pessoa de quem só conhecia os pés. É uma caneca grande, está nova e ali, na calçada,
parece destoar de qualquer alusão ao desabrigo.
É uma caneca de casa, na
qual tomaríamos um café no sábado pela manhã, desprovidas de grandes preocupações. Meia caneca de café, olhando para o vazio por alguns minutos e recobraríamos a energia de um luminária, ainda inteira. A caneca amarela é bastante grande, talvez uns 300 mililitros, tem a estampa de um rosto sorridente e uma alça vermelha, no formato de meio coração. É chamativa e estava vazia, enquanto o homem dormia.
No sábado, quando costumo também acordar mais tarde, pela primeira vez eu vi o dono da caneca amarela desperto. Eu caminhava pela calçada, quando o vi com a caneca numa das mãos, olhando para o infinto, como quem recobra a energia, depois de uma semana carregada de compromissos. Ele olhava por uma janela imaginária, tinha uma feição plácida que só as manhãs de sábado podem proporcionar nesses dias. O cobertor xadrez, ainda cobria as suas pernas; como quem tivesse se levantado e voltado para cama para mais alguns minutos.
Mas o homem da caneca amarela além de acordado, não estava mais silencioso. De longe, percebi que cantarolava alto. A faixa de pedestre, a qual atravesso na maioria das vezes, fica um pouco antes do lugar onde ele dorme, mas estendi o meu percurso para vê-lo melhor e tentar ouvir o que ele cantava.
Na mesma calçada larga onde ele dorme, ficava antes um hipermercado, cujo prédio foi dividido entre um hortifrúti, uma papelaria e um cartório. Nas manhãs de sábado, é sempre possível ver alguma noiva e transeuntes com e sacolas transparentes cujas coroas de abacaxi, sempre escapam pelas bordas.
Nesta manhã havia uma jovem de vestido branco e batom muito vermelho. O homem com a caneca amarela não olhava para o vazio, mas para a noiva. Tão moça, tão bonita, tão feliz; eu acho.
Passo por ele, que não vê mais ninguém e escuto:"Vem, que a sede de te amar me faz melhor...". Enquanto cantava, olhava para ela. Tinha os olhos de sonho e o cabelo bagunçado da noite dormida. Parecia muito jovem também. Ele cantava para ela, com o sorriso da caneca e meio coração nas mãos.
Um dos homens que cercavam a noiva se aproxima e joga uma moeda dentro da caneca amarela. Todos riem. Ele não.
— Aí não, gente boa! Estragou o meu café!
Não tinha café, eu ouvi a moeda tilintando no fundo da caneca. O homem da moeda se afasta gargalhando; é o noivo.
O homem do cobertor xadrez tira a moeda do fundo da caneca, guarda no baú de madeira, volta para a posição anterior, na qual simulava esfriar um café quente, e segue a serenata matutina. "Eu quero tanto te fazer feliz".
Ele canta para ela, que em alguns minutos vai se casar com outro. Ela está de branco e parece felicíssima.
O homem da caneca não se importa, só quer tomar seu café e cantar para a musa ocasional da calçada larga. Para quantas ele terá cantado a mesma música? Quanto cafés imaginários ele tem esfriado nesses sábados de casamento? E se só cantou para ela? E se a caneca está vazia, esperando outra coisa que não seja café ou moeda?
Na volta da minha corrida, ele está dentro de um carrinho de supermercado, sentado sobre a mochila e o cobertor dobrado, com a caneca amarela numa das mãos e um cabo de uma vassoura, na outra, que encosta no chão para fazer o carrinho se locomover.
No antigo estacionamento do hipermercado, ele brinca de conduzir uma embarcação. Uma gôndola em Veneza. Meio coração nas mãos, uma caneca sempre vazia ou será que cheia?
Passo por ele que não cantarola mais. Agora posso correr, porque vi e ouvi quem todos os dias era só uma silhueta vulnerável.
Eu também tenho uma caneca grande em casa. Nossas sedes se equivalem à medida que a faísca de um desejo nos torna menos invisíveis. A moça de branco, o sem teto cantante, meus passos certos em um solo que sempre parece provisório.
Queria que desse certo para nós. Para mim e o homem da caneca, desperto no sábado de manhã, para a noiva que assina um papel e, na cabeça, alguma trilha sonora romântica. Nós que vivemos, no mínimo, dois mundos, o da falta do pão ou o do suor na meia, o do vestido branco e aquele com o qual sonhamos. Algumas vezes ambos se cruzam; é maravilhoso e assustador.
Na caneca amarela não cabe tudo o que mata a sua sede. Porque as sedes se prologam, estendem até a margem de outros rios. Queria que as noivas soubessem que o amor também dorme nas calçadas do hipermercado. Queria que o sedento encontrasse finalmente a sua fonte. Mas amor e sede são corridas de infinitos quilômetros; só a gôndola de Veneza para fazer esse encontro.
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