De novo me alcança e como o desejo clichê da carta "espero que essa mensagem a encontre com saúde"; tenho saúde e isso é tudo o que posso sinalizar como resposta agora.
Quando achava que não voltaria a me encontrar, quando pensava que tivéssemos rompido definitivamente, mesmo que sem qualquer acordo oficial, ela retorna. Pensei que não voltaria porque talvez eu tivesse atingido certa sabedoria da maturidade; talvez porque ela tivesse outras vidas mais interessantes para frequentar.
De novo me assalta, chega sem avisar e não diz quanto tempo a visita durará. Logo comigo que tenho uma inabilidade ancestral para os imprevistos.
De novo chega e, conhecida, senta-se na minha sala e toma café na minha xícara. De novo desinteira o número de pães por morador e encontra os biscoitos que eu guardo para as boas visitas. De novo pede açúcar para o café e me deixa o amargo da sua presença.
De novo me entrega as correspondências, que trouxe quando passou pela portaria, o que sugere a intimidade, porque qualquer um aqui a trata como moradora da minha casa.
De novo ela abre os meus pacotes, experimenta minhas roupas, abre os armários, a geladeira e os meus e-mails, investiga cada lombada de livro novo e bagunça a ordem da estante. Pergunta sobre a maçã importada, a farinha de amêndoa, critica as camisetas de cores cítricas que eu uso para ir à academia e me pressiona a responder dois ou três e-mails, para os quais eu não queria definir uma posição, ainda.
De novo, ela me apavora.
Ela atravessa o corredor, quando me vê com a toalha na mão e se instala no banheiro, ao lado do lavabo; me encara no espelho, leio as suas críticas no olhar que projeta sobre a minha cabeça. Quando ela vem não estou bem, quando ela vem não sou suficiente, forte e bonita como o seu olhar atesta.
De novo ela entra no box e escolhe a temperatura da água na qual iremos nos lavar. De novo a mornidão saudável da sua decisão. Queria água fria, mas ela decide que não. De novo o meu banho é invadido por ela, a qual não encaro, porque não quero ser pedra.
De novo a Medusa dos meus dias me rouba um brilho na tez e a altivez da minha coluna vertebral, atravessa a minha respiração e a deixa entrecortada, vacilante. De novo gaguejo, de novo recuo, suspeito e tenho saudade de Deus.
Quando o banho termina, ela toma a minha toalha e me deixa encharcada fora do piso atoalhado, de novo ela me deixa desamparada de mim.
Ela interrompe a minha rotina, de novo, os meus chás, as minhas taças de vinho, os meus pés sujos no sofá. De novo ela ameaça a tranquilidade sob o meu abrigo, quando bate seus dedos finos e firmes no vidro da minha redoma. De novo ela coloca os meus planos em suspensão, questiona os meus sucessos, ressalta os meus fracassos. De novo ela é minha hóspede e eu sua refém.
Ela quer chamar a minha atenção, quer reafirmar sua força e influência; de novo ela quer me lembrar de que não sou livre, mesmo que tenhamos mantido distância por muitos meses.
De novo ela não penteia ou trança os meus cabelos, mas puxa as minhas mechas, como se pudesse revelar uma calvície. De novo não faz massagens nos meus músculos oblíquos do abdome, não alonga meus plantares, não destrava minha mandíbula; de novo, esse desconforto em tê-la por perto. De novo essa lição da dor.
Não a encaro, mas não posso fugir, por isso sigo na simulação do que é a minha vida sem ela. Vou ao trabalho, saio com amigos depois do expediente, escolho um filme, depois de chegar em casa, ao qual ela também assiste, mas não comenta. Choro muitas vezes na sua frente, sem pudores com essa estranha antiga. Ela não me consola, ela não se arrefece; acho que as minhas lágrimas a nutrem.
De novo ela chega e me faz questionar os meus sonhos, coloca a sua métrica em cada desejo meu e eu não sei mais querer nada quando ela está. Divido minhas xícaras, minhas senhas, meus livros e tudo o que ela faz é me deixar um pouco menor a cada olhar que me envia debaixo das páginas das suas leituras. Não temos solução e ela sabe; não estamos sintonizadas e ela não estremece; nem o meu desconforto é mais um lugar novo para ela.
De novo ela me acompanha até à cama, coloca seus chinelos simétricos ao lado dos meus e me espera apagar a luz. De novo ela escolhe a temperatura do quarto, o lado da cama, a altura do travesseiro e as orações da noite. Quando ela me visita, eu rezo.
Encostamos na cabeceira, ela me confronta, não temos sono. Encaramos nossa condição sem sinal de desistência. Ela ficará pelo período que quiser e eu não posso partir. Ela
que nunca dorme, eu que não posso fechar os olhos quando ela vem.
De novo ela atravessa os meus sonhos, coloca as minhas pequenas felicidades em risco, me aponta o abismo que é o redor da minha cama. Eu sei do seu poder, mas também sei da sua inaptidão em me cercar por muito tempo.
Viro para o outro lado da cama, não serei pedra. Um dia eu acordo e ela terá ido embora. Tem sido assim desde um tempo em que eu achava que ela nunca partiria.
Melancolia, não saia sem comer um pouco de arroz doce.
2 comentários:
Minas não há mais, José e agora? neste 20 de outubro do estranho 2023
Prezada Profª Amanda
Queria poder falar sobre esta melancolia, este angústia que levou Guimarães Rosa a escrever a Terceira margem do rio. Tal qual naquele conto, ficamos presos no que poderia ser aquela segunda pessoa. Não guardo competência suficiente para aprofundar neste tema, mas sei que o caminho transita por estas incríveis dores emocionais.
Seu conto é de uma profundidade inquietante, emocionante e dócil. Fico feliz em vir aqui.
Um abraço
Paulo Abreu
Minas Geraes, vigésimo quarto dia de outubro (outros virão), de 2023
Caríssimo Paulo,
sua presença há quatro dias é comemorada, no entanto só hoje passo por aqui para agradecer a visita, a leitura e a menção ao gênio Rosa (o bastante para me sentir privilegiada!). "O que ela (a vida) quer da gente é coragem".
Volte sempre e sempre
Abraços,
Amanda
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