Repassar mentalmente a receita executada há anos; uma xícara de açúcar, duas de farinha de trigo, uma de chocolate, uma colher de fermento em pó, um ovo, uma xícara de água morna e meia de óleo vegetal. Conferir as datas de validade de cada item, repassar os olhos sobre os vestígios de cada ingrediente; o óleo de coco que untou o fundo da travessa ainda está na bancada da cozinha. O fermento foi incorporado lentamente, só misturado, último item agregado. Forno em cento e oitenta graus, todos os cremadores acesos, durante trinta e cinco minutos. Uma xícara de açúcar, três colheres de chocolate em pó, duas de leite, uma de margarina, mexer até levantar fervura, despejar sobre o bolo ainda quente, salpicar o granulado em seguida.
A massa não solou, as beiradas não ficaram queimadas, a cobertura não grudou no fundo da panela nem deslizou demais. Esse é o caminho. Não tem erro. Não tinha.
O bolo doce, fofo e morno não confortou dessa vez. O granulado afogado em uma lágrima e a colher estacionada no canto do prato: por que não deu certo?
A quantidade de comida para o peixe — uma colher de café, a cada dois dias — o climatizador da água com o temporizador ligado, o aquário sobre o aparador do lado mais fresco da sala, sem iluminação direta, sem abalos do trânsito intenso, protegido pelos dezesseis andares que o afasta da avenida.
Uma cortina de tecido que bloqueia a maior parte dos raios solares, a música que não ultrapassa a porta do quarto lilás, um peixe beta, uma vida vendida como não tão frágil é agora uma fina lâmina laranja metalizada que flutua no azul do aquário sonhado.
Todo cuidado é sempre tão pouco. Um peixe beta cozido no azul finito. Por que a vida foi tão curta?
Retomar o instante do banho, se a água estava demasiado quente, já que era tarde e não fazia o calor dos dias anteriores. Certificar de que o xampu, além da marca usual, tem um pequeno selo na parte inferior do rótulo com a indicação para cabelos oleosos. Identificar, pelo olfato, a máscara hidratante aplicada; a de queratina só deve ser usada uma vez por semana. Se a tolha era a mais velha e por isso mais macia, se o secador estava na temperatura média, se usou o finalizador recomendado para a proteção térmica.
Nem um coque salvaria. Na foto, mesmo com tratamento digital, vai, sozinha, ver o que não ficou bom. Por que tanto frizz?
Apertar a torneira um pouco mais a cada dia, para evitar a goteira que começava. A visita adiada do bombeiro, tentar resolver com um cadarço amarrado no puxador, empenhar um pouco mais de força, só mais um pouco, mais um pouco, até que... a cozinha molhada, a água da pia, invadindo o armário embutido, os guardanapos de papel, agora, inutilizáveis, nas gavetas, o açúcar, o sal, o pote de biscoito cream cracker, flutuando na enxurrada ininterrupta. Tentar fechar o registro, não conseguir sozinha, chamar o vizinho.
Será o cadarço, a omissão da goteira, o adiamento da avaliação de um profissional, a mudança para esse apartamento — o único aluguel possível — a profissão escolhida, o emprego mal remunerado, os livros que eu não li, mas estão secos nas prateleiras, as pessoas para as quais eu não liguei, as que eu liguei, mas não contei sobre a torneira; quantos equívocos molham a cozinha agora?
Se a subida é escarpada demais, se o instrutor foi mais relapso do que deveria, se a minha vocação para o volante é somente imaginária, se serei Telma e Louise na direção; se o meu sapato era apertado ou largo demais, já que não tinha salto; se caminhar será sempre minha partida e chegada.
Pressionei o acelerador e tirei o pé da embreagem simultaneamente; depois, acelerei e soltei o freio de mão. Apostilas lidas, provas realizadas, vídeos atentamente assistidos, aulas práticas para além do número das obrigatórias, nenhum nervosismo demasiado; mas, então, o carro morreu no meio da ladeira. Por quê?
Não ter dito que conseguiria sem cirurgia, não negar a dor, dissimular que era assim mesmo, que as cólicas ou o sangramento eventual não eram nada, não admitir que o corpo falharia; os limites de mulher que a avó não teve por treze gestações — só falhou ao final de duas. Natimorto.
Não era planejado, mas foi desejado; não queria festa de revelação de sexo biológico, mas já tinha um nome para cada gênero, antes do ultrassom.
A idade que não era a ideal, o álcool antes de saber dessa outra existência, o consumo de qualquer outra substância em esmaltes de unha, cremes para cabelo, comidas, produtos de limpeza, ração para o gato, as pombas no telhado, combustível de automóvel, poluição, água contaminada, poucas horas de sono. Quando apartou a mãe do filho? O que não deu a vida?
Reviver o último dia, a derradeira conversa; como foi a última vez que olhou? Em quem doeu mais? Repassar os investimentos, as projeções, todas as falhas, as surpresas, o melhor está por vir, o melhor já passou. Reviver os dias antes do fim, as semanas, os meses anteriores. Será que o esquecimento daquela data, nome, grau de parentesco, número da casa de festas ou assunto era prenúncio?
Repassar os últimos anos, desde o mais recente até o primeiro deles partilhado. Será que a cama é que foi sempre pequena demais? Será que o ronco não era tão baixo quanto imaginado? A altura da mesa de cabeceira é o que limitou os sonhos?
Quem morreu antes, a esperança ou o amor? Quantos segundos de diferença entre a partida de um e de outro? Algum dia, ressuscitarão ao menos um deles?
Por que a receita de anos não conforta mais? Chora sobre o granulado e cutuca o pedaço de bolo sem apetite. Por que não deu certo?
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