domingo, 12 de novembro de 2023

Porque o café solúvel acaba e a Terra esquenta

  Porque preferi ir ao aeroporto te buscar, com um cartaz feito de última hora, para que achasse graça e se sentisse amado, não comecei o texto de domingo.    
  Para que quando o avião pousasse, você se encontrasse, de novo em casa, deixei o bloco de notas aberto, tomei banho e não almocei, para que te visse no tempo exato da sua chegada.
  Porque o voo atrasou, porque tínhamos muito o que dizer, porque esse encontro me pacifica, porque ver você é sempre a melhor escolha, não cheguei a tempo de escrever o que eu queria hoje.

  Porque as roupas se acumularam na máquina por uma semana, as janelas parecem menos translúcidas, o tapete da sala precisa ser limpo, as peperômias requerem poda, não terminei o texto começado há dias.
  Porque me vestir, comer, fechar e abrir janelas e portas, dar os passos até o trabalho, supermercado, clínica médica, consultório odontológico, cinema, às vezes, bares e restaurantes, casas de parentes e amigos e dormir me requisita um trabalho anterior ao trabalho de cada coisa e, por isso, os blocos de notas  ficam sempre à espera.
 
  Porque fingir para a foto, mentir para a chefe, enrolar a orientadora, escolher o sabor do iogurte, organizar os livros na estante, comprar absorventes íntimos, me inteirar sobre os benefícios  para a saúde e os malefícios éticos do consumo de ovos de galinha, toma muito tempo, de quatro a cinco páginas por dia e o texto não sai, não sairá no dia que eu escolhi para ele. 
  Porque me atualizar sobre as notícias, descobertas científicas, novas celebridades — cujos nomes sei mais do que sobre o que fazem — não me esquecer dos aniversários, estar atenta à dieta, ao meu índice glicêmico, à condição cardíaca, ao saldo da conta bancária me deixa sempre em dívida e eu sinto que nunca farei literatura. Mas a constatação também não é definitiva, enquanto eu penso nisso, já estou atrasada em quinze minutos para alguma hora marcada.
 
  Porque entre o eclipse e os teclados, entre o pão doce que eu prometi que faria para o café da tarde com convidados e o cursor piscando na tela com duas ou três frases, entre o convite de última hora e o planejamento semanal da escrita, a urgência ainda está fora do parágrafo inacabado.
  Porque é preciso luz solar para o cortisol, é preciso um telefonema para perdoar as faltas e justificar previamente as próximas ausências, é preciso ligar para o pedreiro e fazer um orçamento para a troca dos azulejos na parede da pia, é preciso descascar uma réstia para o almoço, é preciso assumir um incêndio enquanto os bombeiros não chegam, é preciso dizer o que é preciso e escrever não é preciso. 
    Porque sonhar em viajar para outro país parece mais apaziguador do que inventar um novo mundo, sem conflitos, na ficção.

  Porque ainda estão em guerra, bombardeiam hospitais, escolas e feiras; a Amazônia padece; os meus alunos ainda não sabem ler; os migrantes sofrem na casa e precisam partir, sofrem na ausência da casa e precisam ficar; porque escolher é mais difícil do que só sentir; porque a Antártida não me parece tão longe e eu não tenho tempo de revisar uma página que escrevi há pouco mais de uma semana. 
  Porque o impacto de um livro é, para a autora, num tempo e muito depois para uma leitora e, na maioria das vezes, elas nunca conversarão; os abalos sísmicos de cada uma não será registrado em parte alguma.
 
  Porque a publicidade também me envenena, as pressões sociais batem à porta com os testemunhas de Jeová e, assim como eles, me prometem um paraíso impossível  que só chegará depois de muitas concessões absurdas e, por isso, tenho que ser vigilante e esperta; não escrevo porque fico alerta sob a guarnição.
  Porque os manuais confundem, as placas não apontam todas as direções, o uso da gramática foi negligenciado e as sirenes de ambulância suspendem, por alguns segundos, o desfecho da oração.
  Porque a lista do supermercado não termina, porque os desencontros também não.  Porque esperar para escrever só depois que tudo estiver em equilíbrio é planejar um divórcio depois que os filhos estiverem grandes.

  Porque o café solúvel acaba e o planeta está cada vez mais quente, custa escrever em um mundo que deteriora; quem vai ler depois?
  Se escrevesse um romance, os baldes de água transbordariam, as prateleiras acumulariam pó, você ainda estaria no aeroporto, procurando a casa em olhos desconhecidos, os azulejos cairiam todos, meu emprego não me sustentaria e, o mais importante, meus alunos ficaram sem ler. Por isso eu nunca vou escrever literatura.


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