Acendo a luz, pego a escova de dentes, enquanto olho para o espelho um pouco embaçado. Ainda que tenha bebido pouco álcool, ao olhar para o meu reflexo, sei que foi o suficiente para me deixar mais lenta, mais desamparada de solidez. Flutuo um pouco, enquanto o creme dental amarelo derrama pelas bordas da escova. Não estou segura em mim, embora tenha conferido as três voltas de chave na porta, quando entrei.
O roteiro é simples e terei sucesso se segui-lo sem desventuras: escovar os dentes, limpar a pele do rosto, tomar um banho, beber um copo cheio de água, arrumar a cama e me deitar. Sem hidratante para os pés, para as unhas ou massagem com óleo no cabelo. Talvez um só hidratante para todas as partes do corpo e mais nada. De repente, um barulho forte, molhado, algum pequeno corpo em queda no banheiro.
Nada na pia, a escova ainda está na minha mão, o tubo de creme já está no lugar, a embalagem com o produto de limpeza facial continua intacto na bancada; só a minha imagem derrete, mas isso não faz nenhum som. Talvez um sabonete tenha caído, mas o barulho é mais mole, um tanto flácido, molhado, parece borracha ou algo mais gelatinoso. São três da manhã e o banheiro está quente e iluminado pelas duas lâmpadas, abro o box de uma só vez, porque não suporto o suspense. Logo, o corpo cujo som da queda interrompeu o meu roteiro, aparece. Há muito eu não via o réptil que me causava repulsa na infância.
No box de chuveiro gotejante ela parece imponente e sem medo algum, acho que também foi surpreendida pela minha chegada. Parece que me olha, parece que também investigou os meus sons. O do interruptor, quando acendi as lâmpadas, o da escova e do creme dental quando retirei dos seus recipientes e talvez um meio muxoxo, quando meu reflexo ébrio no espelho do banheiro, já desacostumado com esse tipo de imagem notívaga, me apresentou a mim.
Faço alguns movimentos na tentativa de afastá-la um pouco, testar sua condição e talvez me poupar de decisões ou estratégias mais elaboradas.
Eu não mato lagartixas. Disso eu sei, mesmo sem muita firmeza corporal, agora, e um pouco reticente quanto os rumos que esse encontro tomará.
Penso em espantá-la, apenas. Abrir caminho para o meu banho e não me preocupar com a possibilidade de testemunhas. O box é apertado e se eu abrir o chuveiro, logo ela será afetada. Tento convencê-la a se afastar, talvez deva desconvidá-la para essa noite. Vou espantá-la para o lado do basculante e, se ela se sentir afetada pela água fria do chuveiro, abandonará a casa, o banheiro, a precariedade do corpo feminino depois de alguns copos de cerveja.
— Senhora Lagartixa, nada contra, mas o calor, o álcool, a chegada em casa a essa hora me faz querer um banho. Longe de mim fazer qualquer mal, mas não cabemos as duas nesse estreito box.
O receio dessa convivência não é estritamente uma atenção com a preservação da vida da réptil. É, antes, um receio de ser tocada por ela, de de repente, sentir o corpo mole, gelado e úmido de um medo tão infantil. A imagem de uma lagartixa, saltando nas minhas costas ou busto, enquanto eu me refresco, me faz ser mais incisiva na decisão de espantá-la.
Seguro o chuveirinho higiênico e penso em afastá-la com um jato de água, mas compreendo que não tenho a destreza suficiente de afugentá-la sem feri-la. A água sairia com muita pressão, teria que acertar em um ponto muito pequeno do corpo antipatizado e não sei se tenho condições para esse nível de medida. Resolvo que o barulho é quem vai afugentar a invasora.
Ligo o jato de água e miro na direção contrária do corpo rechaçado. Ela não se move. Abro e fecho mais três vezes e ela parece muito mais sólida do que eu ou as paredes do banheiro. Por muito menos eu teria corrido, mas ela permanece exata, sem dúvidas de que o lugar em que está pertence a sua existência. Invejo a lagartixa.
Ligo o chuveirinho mais algumas vezes e começo a aproximar a potência da água na sua direção. Nós não podemos voltar atrás. Ela continua estática, eu começo a recobrar a minha destreza, ameaço, deixo de ser doce e compreensiva. Eu quero o que ela tem e ela não abre mão do meu box.
Logo, um jato de água alcança um pedaço do rabo da réptil, que se desestabiliza e cai próxima ao ralo do banheiro. Nos assustamos, ela fica de barriga para cima, se contorce, mas a água ao redor deixa o piso escorregadio e ela não consegue se aprumar. Se eu abrir de novo o jato e apontar para ela, venço em alguns minutos e resolvo essa situação estranha e disputa remota. Mas eu não matarei lagartixas, juro. Alcanço a escova de limpeza do sanitário e ofereço o cabo a ela, ela encosta as patas no objeto, dá um impulso e se vira de novo. Tento fazer mais barulhos para afastá-la, mas tudo o que ela faz é abrir espaço, se mantendo no canto do chão do box.
É uma guerra perdida. São quase três, estou suando, quero beber água e dormir. A disputa me faz ter mais controle sobre o meu corpo, agora já não derreto tanto, pareço quase tão sólida quanto a invasora branca de listras pretas. Ligo a ducha fria e tomo o meu banho.
Nada nela que não seja meu.
Não olhei para trás depois que me sequei e apaguei as luzes.
Amanheço com dor de cabeça, acordo para beber água e me lembro de procurar por ela no banheiro.
Uma coragem branca com listras pretas está estirada em um canto da parede. Não há vida. O basculante está fechado. Eu a sufoquei. Eu matei quem eu quis que sobrevivesse ontem.Tenho um dia difícil; em um luto inexplicável. A quem contar que sou outra; que agora mato lagartixas, mesmo quando quero protegê-las? A imagem no espelho, ontem, derreteu completamente. A vida que eu tinha e a lagartixa foram descartadas no lixo do banheiro. Eu sufoquei uma coragem, eu me lancei numa outra vida; como voltar a ser macia agora?
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