Tivemos uma noite tranquila por aqui. Há meses acompanhávamos a sua chegada, sem fecharmos os nossos olhos. Os sons da cidade, aos poucos,
mais distantes; o tilintar das canecas, copos e xícaras, as discussões nos celulares, as batidas de
portas e as chaves rodando nas fechaduras, as perguntas das crianças, os solados dos sapatos alcançando os solos, as músicas, as vozes dos atores e âncoras de TV, o estalar de dedos, os latidos dos cães domésticos, as explosões dos motores de veículos, os secadores de cabelo, liquidificadores, lavadoras de roupas e toda a sorte de eletrodomésticos, vendidos como silenciosos, se esvaindo até se calarem; enfim, o silêncio. Aterrador, rigoroso e definitivo até clarear. Nos últimos anos é ela quem decreta nossa solidão. Toda a cidade dorme e nós dois permanecemos nessa vigília involuntária.
Durante o dia, tudo é cuidado. Tudo é hora e prescrição. É como se eu tivesse que manter uma máquina em funcionamento; medir temperatura, pressão, verificar válvulas e articulações. Operária padrão, quase não penso enquanto executo as tarefas.
Evitar a farinha branca, o leite é só sem lactose, mamão não pode, os tomates devem ser sem sementes, nunca mais álcool, café ou açúcar, quase não mais diversão. Os horários de descanso também são contados. É só quando a máquina funciona no modo automático; no cochilo antes do almoço e no do final da tarde. Nos intervalos, ouço músicas, assisto a filmes em sessões de vinte ou trinta minutos ou leio algumas páginas de livros, que quando chego ao fim já não me lembro de quase nada.
Um dia ninguém vem mais. Me esqueço também, mas leio e converso sobre atualidades, se tenho interlocutor. Geralmente são os caixas dos supermercados, os atendentes de farmácia, o motoboy de entregas, os enfermeiros, assistentes de laboratórios de análises clínicas ou o carteiro. O porteiro se afastou daqui, depois que aceitou um convite para um café de menos de dez minutos e a síndica o repreendeu; ele me ajuda com as sacolas, me cumprimenta, mas não aceita mais café ou conversa de mais de quatro ou cinco frases. Os trabalhadores que fazem a manutenção da casa também podem ser os escolhidos para receberem os meus pensamentos, depois de muitos dias em silêncio. Pareço a minha mãe, quando envelheceu, mesmo que tenhamos sido tão diferentes a vida inteira. Só hoje compreendo a solidão materna, que é intrínseca aos ofícios domésticos.
Nos períodos de descanso também converso com ela; continuo incrédula do paraíso ou do céu, mas a minha mãe é imortal, agora.
Estou ativa, ando lentamente, mas vou a quase todos os lugares, demoro mais tempo para chegar e não posso passar muito tempo afastada de casa. Carrego sacolas, abro portas de armários e prédios e tampas de maionese. Cozinho, lavo, passo e guardo roupas, não me escondo mais se vejo uma viatura policial nem sinto um frio na barriga se ouço a sirene de uma ambulância.
Me acostumei com sondas, veias, soros, sangue, sirenes, curativos, luzes acesas sem aviso prévio, engasgos, tosses e todo o tipo de secreção. Desacostumei de não fazer nada, de acreditar no país e de me sentir corajosa.
Agora temos as noites longas, o silêncio que nos afunda cada dia mais e os círculos desfeitos, pela distância das obrigações muito mais do que pela geográfica. Tínhamos memórias, muitas e nítidas ainda. Colocava nossos álbuns favoritos e narrava nossas experiências, você sorria e parecia ainda dançar comigo; sem nunca um pisão no meu pé.
Mas, agora, também vou me esquecendo dos detalhes dos quais me orgulhava em tê-los completos e, às vezes, floreado na lembrança. A memória precisa da fala; não ter para quem narrar faz com que ela se apague lentamente, como os sons antes da noite completa. Tudo se distancia e o que temos é aguardar pelo escuro. Por isso os dez minutos do café com o porteiro eram redentores.
Vou esquecer você. Mas, antes, começo por mim. Alguns dias me esqueço de comer, noutros de escovar os dentes ou pentear os cabelos e até de tirar o pijama, que eu só me lembro perto da hora de vesti-lo de novo. Eu vou esquecer você, mas, antes, organizo seus remédios com a ajuda do alarme do celular — que invenção maravilhosa! — troco sua roupa de cama, cantarolo o tango de Gardel que dançamos, pela primeira vez, quando nos conhecemos e ajeito o seu travesseiro para que sonhe longe.
Eu vou esquecer você, mas antes, me esqueci da última vez que fomos ao cinema, mas me lembro de vários Bergman, Godard e Fellini que
assistimos no cinema do Centro e de muitos cafés, mas não do último. Eu vou esquecer você, mas antes, me esqueço de maneira regressiva, das últimas coisas em direção às primeiras. Eu vou esquecer você doente, depois me esquecerei do acidente vascular que o colocou aqui, depois me esqueço de você grisalho, quase calvo, depois de você grisalho com cabelos volumosos, até chegarmos ao salão com Gardel e os seus olhos brilhantes.
Eu vou esquecer você, mas antes, de todo o resto a nossa volta. O rosto da síndica, o número do nosso prédio, o nome da rua, o que eu fui fazer no supermercado, para que serve cada pílula, de pagar os impostos, as contas de luz e água e, só depois, o dia em que pediu a minha mão e que decidimos crescer juntos. Eu vou esquecer você, mas antes, acho que esqueço da minha mãe, porque só assim poderemos nos casar de novo e de novo.
Depois que a ambulância veio buscá-lo, fiquei horas no sofá sem saber que direção tomar, me lembrei de um filme que assisti numa dessas noites insones. Dois velhos como nós, abandonados no mundo, antes de o abandonarmos. Chorei muito e acho que nem foi pelas personagens do Gaspar Noé. Estamos presos às coisas que escolhemos, quando só víamos uma outra
coisa.
Vou esquecer você, mas acho que serei capaz de me lembrar da nossa escolha até o último dia. A noite envelhece e talvez eu nunca mais tome um café de dez minutos com nenhum porteiro da cidade. Vou te buscar para te esquecer depois. Vou te buscar porque Gardel ainda toca ao fundo. Escuta a nossa escolha até a noite silenciar sobre nós.
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