segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Nem sempre a pena, às vezes o insulto

   Coisas ruins acontecem. Às segundas pós-feriados, trabalhos que precisam ser terminados; nem sempre
prazos estendidos nem sempre a compreensão dos vestígios da fadiga, mesmo pós-descanso. Atrasos, tropeços, perdas de pequenos objetos e lutas, esquecimento de palavras, de promessas e de retornos aos contatos anotados na folha amassada. Acontecem rompimentos de barragens, de paciência e de relações; por água, por limites ultrapassados, por abismos irreparáveis.
  Coisas boas acontecem. Às segundas-feiras, um chocolate nas mãos, uma pergunta à porta, um elogio infantil. Acontecem resoluções à luz do dia, um outro passo, um desvio, uma saída de emergência com escada para liberdade.  

  Coisas ruins acontecem às segundas. A sola do sapato favorito descola, no teto do apartamento uma nova infiltração, as parcelas se acumulam e o salário é só no quinto dia útil. O ventilador não funciona, a internet não carrega o documento, um mioma no exame. 
  Coisas boas acontecem à tarde. A visita de uma família de micos ao batente da janela, uma banana, um copo com água, os dedos minúsculos que seguram a fruta, o barulho quase inaudível da deglutição dos símios e os olhos brilhantes de medo e espera.
 
  Coisas ruins acontecem às manhãs, enquanto a cidade ainda acorda. Mais uma vida destroçada na linha férrea, o sinal da cruz de setenta por cento dos passageiros do ônibus e o silêncio até o ponto final; a morte voluntária é muda. Um dia, grandes templos se transformam em ruínas, supermercados ou estacionamentos; cinemas de rua se tornam igrejas, lanchonetes ou terreno baldio; uma alegria parece pesada demais para carregar, onerosa demais para manutenção.
  Coisas boas acontecem antes das duas da tarde, na segunda-feira. É benigno, tem tratamento, o envelope descansa em quatro mãos; a sentença não alcança o corredor da clínica de exames.

  Coisas ruins acontecem em um jogo de futebol, o time perder é a menor das derrotas. As revistas por seguranças armados, a desconfiança, o ingresso caro que é suspeito porque parece mais caro para alguns. Os hinos deturpados, os gestos criminosos disfarçados de piada, a mãe, a mulher, a irmã, a prima, a desconhecida, a filha que não estão seguras na arquibancada. Coisas ruins acontecem nos estádios aos domingos. Um ônibus apedrejado, um grupo encurralado, as emergências preparadas para ferimentos à bala.
  Coisas boas acontecem nas partidas de futebol. Um menino e um velho realizam um sonho ao mesmo tempo, uma mãe paga uma promessa, um pedido de casamento entre dois torcedores de times rivais, um atleta em sua melhor performance, um troféu, a medalha, um acontecimento contado por gerações. 

  Coisas ruins acontecem em casamentos. Nas festas, a queda do bolo, a falta de luz, a playlist ruim, a bebida que não está gelada, o desmaio do celebrante, o calor, o temporal, o frio da noite.  Depois da festa, os afazeres domésticos não-partilhados, o ciúme, as incompreensões, os gritos, o silêncio, a indiferença que comemora dezenas de bodas em retratos que fingem. 
  Coisas boas acontecem em enlaces. Nas comemorações, bem-casados recheados de doce de leite, alegria genuína, convidados descalços, gravatas abandonadas em cima das mesas. As dúvidas, as dívidas, as realizações, os sentimentos, as descobertas, as dores, os cobertores divididos.

  Coisas ruins acontecem ao descer o calçadão do Centro, a visão periférica e disfarçada da promessa de um amor que não aconteceu, a mira de um pombo que risca com merda o ombro da camisa branca, o salto agarrado entre pedras portuguesas, as ofertas de seguros, cartões de lojas de departamentos e planos de celular. 
  Coisas boas acontecem ao passar pelo calçadão do Centro, a performance do artista de rua, o painel de Portinari, os cheiros de pipoca com queijo, amendoim com chocolate e de churros, os balões metalizados do vendedor ambulante, os encontros marcados sob o relógio do parque, as crianças de uniforme puxadas pelas mãos de uma avó, o meu dentista que anda sempre adiantado para as consultas. 

  Coisas ruins acontecem nas noites de segunda-feira, um tratado científico que ninguém vai ler pelos próximos dez anos é concluído, assim como um texto desarrazoado de uma desconhecida tocada pelas coisas ruins de uma segunda com centenas de civis mortos ou reféns de soldados; que detesta os exércitos e quer gritar isso. Uma pomba que negou a pena, mas não o insulto; uma sociedade acostumada à bomba com salvo-conduto.
  Coisas boas acontecem nas noites de segunda-feira, um tratado científico é  terminado, um grito desarrazoado é transcrito, uma pomba é finalmente compreendida, uma camisa branca é lavada e não tem manchas. 
 



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