terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Uma cidade às duas

  Nenhuma delas tem pressa, mas certamente não estão prostradas. Algumas caminham mais lentas, mas não titubeantes. Parecem donas do próprio ritmo, sem obediência a qualquer destino externo. Não consultam relógios, não parecem ter que corresponder a uma agenda ou a um compromisso. Nesses meses, não vi nenhuma com os olhos presos a uma tela; se têm celular, nunca vi. 
    Quando me cumprimentam me acalmam, quando me olham me veem, quando atravessam a rua vou um pouco com elas.
    Seus tênis de cores mais suaves que os meus, também amortecem menos, mas não usam a força nos passos. É com constância macia que dobram as esquinas.
 
    Por vezes, acho que são as donas da cidade. Estão na rua, cotidianamente, em maior número do que os homens. Andam com a desenvoltura da coragem e, quase sempre, saem acompanhadas de outras mulheres. 
    São duplas certas, constantes. Ao ver uma, já sei que a outra a segue. Como as esquiadoras de montanhas, que nunca sobem só; que apreendem que companhia é sobrevivência.
     Não sei precisar o meu tempo de convivência com elas, tampouco se elas se conhecem ou se também se encontram entre elas, como eu todos os dias. São quatro pares de mulheres indomesticáveis. 

    No primeiro trecho, encontro as mulheres de listras. Com vestidos de malha listrada, cada um de uma cor, meias com chinelos, sorrisos de arcada projetada e os idênticos olhos, cujo globo parece um pouco deslocado; suspeito que são mãe e filha. 
    As primeiras do trajeto, foram as últimas a integrarem o meu grupo. Parecem tímidas e saem, sobretudo, em dias muito frios para tomarem sol. Os primeiros cumprimentos eram discretos, abafados e essencialmente íntimos; pareciam me oferecer um pouco mais a cada dia. Foram generosas a ponto de, agora, dizerem síncronas um alto bom-dia. Lado a lado parecem a mesma mulher em tempos diferentes, tamanha semelhança de aparência, gestos e roupas. O cabelo preto, longo e muito liso da mais jovem, na mais velha, é curto e grisalho. As maçãs do rosto mais velho mais encravadas no osso, saltam na face da mais jovem. Não usam maquiagem e o único acessório, que eu vi carregarem, é a sacola de tecido do supermercado. 

    No segundo trecho, duas mulheres que caminham um pouco mais rápido, têm os corpos pequenos e músculos definidos, o da mais nova um pouco mais, o tronco fica bastante destacado na camiseta de malha e a panturrilha arredondada se sobressai na legging justa. As duas parecem irmãs, talvez já sexagenárias. São mais ágeis que as primeiras e os cumprimentos também têm mais energia. Nossos encontros são, em geral, no retorno delas da feira, cada uma com um carrinho, abarrotado de sacolas, ou quando a mais velha lava a varanda ou a calçada em frente a casa verde, a qual dividem.
    Também sorriem, mas já avançamos mais na comunicação. Conversamos, geralmente, em movimento, algumas frases curtas e exclamativas sinalizam nossos encontros; tá quente hoje, tá sumida, bom domingo, boa semana.

    As próximas do trajeto, também parecem irmãs, talvez gêmeas ou muito parecidas, talvez septuagenárias. Possivelmente partilham o mesmo tubo de tinta para cabelo, atléticas, encontro enquanto caminham de forma mais cadenciada; às vezes com um cão. 
    Quase sempre estão do outro lado da rua e andam em direção contrária à minha, não sei qual de nós saiu mais cedo e se elas ou eu têm mais quilômetros diários. Só sei dos sorrisos, dos cabelos vermelhos brilhantes e dos braços levantados em um cumprimento muito desenvolto.
 
    A última dupla do meu trajeto são as que moram mais próximas do meu apartamento, mas chegam à rua, quase sempre, quando eu já estou no caminho de volta. São, também, mãe e filha, muito semelhantes nos sorrisos, biotipo e ousadia capilar. A mãe tem o fundo do cabelo já completamente branco, o que facilita que qualquer tom se sobressaia na cabeça, lilás, verde, azul e rosa já suavizaram o cinza do asfalto da avenida. 
    Quando passo por elas, tomam sol em banquetas de madeira na calçada em frente ao sobrado onde moram ou estão sentadas no restaurante vegano vizinho, bebericando um suco colorido ou, se passo no final da tarde, bebem chopes em uma das mesas da pizzaria entre o restaurante e o sobrado. Às vezes desejo  a vida que desfrutam na mesma quadra onde moro. Chopes, sucos, sol, conversas, sorrisos e cores inusitadas de cabelo. Em que dia isso também será meu?

    Nessa cidade eu me acostumo. Nessa cidade de mulheres, caminhar é fácil, prazeroso e sem receios. Quase não vejo ou cumprimento homens diariamente, são poucos e mais solitários. Não tem ameaça, tudo pacificado na cidade das duas mulheres. Tudo apaziguado na cidade cerzida. Pontos minúsculos consertam os rasgos.
     Quatro pares de mulheres se recusam à clausura. Quatro pares de mulheres absolutamente citadinas; embora tenham suas hortas, seus quintais, seus jardins, seus vasos de plantas na varanda e cães dóceis e velhos à espera. Quatro pares que aprenderam a maior lição da montanha de gelo; só se deslocarem acompanhadas. Nunca subir ou descer a montanha gelada sozinha. Encontro as Cholitas mineiras todos os dias e aprendo com elas a escalar a liberdade.

 


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