O galo ainda canta e já são nove horas da manhã, desvio dos dois homens fortes que ocupam a calçada da rua estreita, atravesso para o outro lado enquanto ainda descem a cadeira de rodas do carro estacionado em frente ao prédio. Deixo os homens e os seus empenhos para trás e evito o incômodo, a melancolia que o encontro quase sempre me provoca.
Eu fujo de um jovem de barba cerrada e cabelos volumosos, num corpo quase inerte. Vinte anos de sonhos desviados, de um quase ir e agora ficar, de um dia que não era mais o que pensava que seria. Me escondo do que eu não sei sentir sem chorar. Fujo da injustiça da qual também é feita esse mundo, que recortamos leve e colorido em um conjunto bizarro projetado na tela de desconhecidos.
Eu recuso o trágico, o desvio dramático dos acontecimentos, sejam eles meus ou não. O acidente, a condição, a notícia, o estar aterrado a um lugar ao qual não quer pertencer. À cama, ao soro, aos lençóis em tons pastel, às videochamadas de familiares pouco hábeis com o foco da câmera, às negativas do convênio médico, aos resultados dos exames, aos vinte anos que não foram capazes de estancar esse sangue que transbordou de alguma artéria jovem. Aos atestados, às medicações, à comida de hospital, ao sal que ninguém pergunta mais se ele quer, aos sachês de ketchup, mostarda e maionese que ninguém mais trouxe. Eu não suporto esse lugar que ele não devia nunca visitar. Aos vinte anos, no máximo, um primeiro canal ou sutura do supercílio. Aos vinte anos, glicose na veia para aplacar a bebedeira.
Eu corro porque não sei segurar. Os homens vão deslocar um corpo, um quase menino e eu vou estar longe, ganhando quilômetros que ele talvez não conheça fora do carro. Penso no que ele não pode, me lembro de que a minha liberdade também não é assim tão ilimitada. Talvez eu seja a imagem inerte de alguém.
Corro porque não queria pensar em nada hoje, tento fugir do que não é possível abandonar pelo caminho. A cada passo penso na barba cerrada, no cabelo volumoso sobre a fronha, os sonhos que ele teve na véspera do acontecimento, o susto, o som da sirene da ambulância que não se esquece jamais. Quero esquecer que também tive vinte anos e que há muito não tenho, mas fiz muitos aniversários quase ilesa e que se quisesse jogava futebol agora. Volto da corrida e sei que sou outra, mas meus tênis ainda são pretos com contornos rosa, viro a chave na porta e ainda não abandonei nenhum pensamento. Procuro o livro do Zen budismo na prateleira, vou tentar relê-lo na sala de espera do dentista, mais tarde.
Não tenho tempo para a leitura, chego suada dessa outra caminhada, aperto a campainha e logo entro no consultório com ar condicionado. Deito os meus dois vinte anos numa cadeira acolchoada e reclinável, abro a boca e espero a sentença. Tudo demora mais hoje. O refletor da cadeira é forte, fecho os olhos e acho que assim minha boca ganha maior amplitude.
— Vamos salvar esse dente.
Ele diz.
Somos só eu, ele e a auxiliar no consultório, agora. Mas quando ele sentencia o salvamento, ainda de olhos fechados, eu imagino uma multidão empenhada na tarefa.
Influenciada pela leitura na infância, da história na qual uma baleia encalhada numa praia, com uma dor de dente lancinante, que ganha o engajamento, página após página, do pescador, da mulher do pescador, dos filhos do pescador, do comerciante de peixes, da florista da banca ao lado da peixaria, da professora que comprava flores, dos alunos da professora, da freira, do aldeão, dos turistas ingleses, do barbeiro, dos músicos do coreto, dos condutores de balsas e, finalmente, de um construtor que envolve o dente da baleia com a corrente que segura um guindaste e em um movimento sincronizado de todas as personagens, a baleia tem seu dente arrancado.
Tal qual a baleia da história, por quem eu torci na infância, sou grande e completamente vulnerável. Corpo estendido na areia, animal contido pela dor excruciante.
Não quero que o dente seja salvo, quero que a baleia sobreviva.
Amanhã a corrida, amanhã o moço na calçada, amanhã o galo boêmio, que acorda às nove. Amanhã o dente ou a baleia. Acaba a consulta, a promessa permanece:
— Salvaremos esse dente.
Me debato na areia; será que ele não vê?
Não há salvação sempre; essa é a primeira difícil lição da vida adulta.
Para enfrentar esses dias difíceis, alguém que não tenha medo da boca imensa da baleia orca
2 comentários:
Minas Geraes, ainda que tardia
Prezada professora Amanda
Tema de profunda reflexão. A distopia do tempo no cantar dessincronizado do galo, o rapaz cadeirante e a dor que o cerca e a magistral baleia para mostrar que tamanho não está relacionado com problemas.
Como sempre, se superando mais e mais. Desejo que supere todas as dores deste 2024, como assim tem feito desde o abrigo seguro do ventre materno. Não basta desejar um Feliz Ano Novo, mas sim, Vá, Amanda e vença o que conseguir vencer. Não acabarão as dores, os problemas, as angústias, mas haverá na dose certa, no momento certo e da maneira certa o amor, a caridade, a fé e a esperança.
Há muitos anos passados, um casal amigo perdeu a filha de 9 anos. Comprei na Livraria um livro para conforta-los e nunca dei a eles. O livro - "Quando coisas ruins acontecem às pessoas boas" escrito pelo rabino Harold Kushner. trata do problema da existência do mal, a partir da dor da perda real do seu filho. Eu, naquela época, refleti que nenhuma dor se justifica por outra. Guardei o livro par sempre me lembrar de não esquecer disto.
Um abraço, Amanda!
Minas, 12 de janeiro do recém 2024
Caro amigo mestre Paulo,
sua ausência foi bastante sentida por aqui, mas na mesma medida também compreendida. O tempo "escorre pelas mãos", como uma canção pop diz, mas há sublimes momentos em que ele parece parar...escrever, ler e tê-lo aqui são alguns desses breves e prazerosos momentos.
"Vá, Amanda e vença o que conseguir vencer", não recebi melhor desejo de ano novo do que este! Muito, muito, muito obrigada! Vá, Paulo e vença o que conseguir vencer! Abraços em todas por aí! Sigamos sem perder a ternura e a esperança.
Beijos,
Amanda
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