segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Coisas das quais preciso menos do que um peixe de uma bicicleta

    De isqueiros descartáveis, cigarros eletrônicos, cinzeiros personalizados, piteiras, cuspideiras ou enxaguante bucal de manga.
    De invadir um território que não seja meu, mesmo que eu quisesse que fosse. De uma casa que não posso dividir com um gato, de um amor que não se senta à mesa ou saiba onde guardamos os pratos.
    Raquete de tênis, luta de MMA, UFC ou um ringue. De um homem que grite nem de um que dê socos na parede, quando contrariado.

    De uma passagem de avião para o Texas, de uma bicicleta com rodinhas, mesmo que eu não tenha aprendido, ainda, a me equilibrar.
    De um bonde quebrado chamado Desejo. De um trem parado rumo às estrelas. 
    De uma penteadeira com luzes em volta do espelho, de um estojo de maquiagem, de um curso de datilografia, de água com açúcar quando o choro for de raiva.
 
    Da opinião de um homem branco hétero, da admiração de um homem branco hétero — porque só a teria se eu fosse um homem branco hétero. Tampouco da atenção, dos conselhos, da exibição e da vaidade de um homem branco hétero. Das mentiras.
    Do contato de um design de interiores ou de sobrancelhas; de uma escada caracol. De mertiolate na ferida ainda aberta. 
 
    Do dorso de um leão morto, da cabeça de um veado alvejado, da carne de uma capivara atropelada, dos chifres de um cervo, de um lobo-guará empalhado na sala de estar, do marfim de um elefante.
    Dos olhos pedintes de quem já tem muito. Da meritocracia dos exploradores históricos. Da mão de alguém cuja cabeça não está mais.
    Da professora de catecismo, de Benzetacil nas nádegas todo inverno, de Biotônico Fontoura para estimular o apetite. Das fotos da Britney Spears numa lanchonete, chorando com o filho bebê no colo. De pão sem glúten, da dieta da sopa. De uma calça branca de cintura baixa, de um confisco na poupança, de um caçador de marajás. De uma oitiva  entres a supervisora e adolescentes que matavam aula na quadra de esportes. 
 
    Não preciso dos olhos condenadores para Capitu, da grosseria do Olímpico com a Macabéa, da morte da Baleia na travessia para fugir da seca, da última Coca-Cola para Clarice Lispector.
    Das lágrimas do crocodilo, das flores no dia oito de março, da condescendência quando explicam um problema no meu carro. Das músicas, dos poemas, das homenagens públicas só para as musas; das cartas de Manuel Bandeira, aconselhando a noiva a não fazer poesia. 
    Da tristeza dos três tigres e tistreza do liberal na política e conservador nos costumes. Das palestras motivacionais nas empresas, dos coaches para relações amorosas, de quem chama depressão de energia ruim. Da piada homofóbica, racista, misógina na sala de café do escritório — engasgo.
 
    De algumas lembranças, gatilhos e obstáculos emocionais. De alguns esquecimentos, bloqueios e entraves afetivos. Da sisudez no trabalho e inocência nas relações pessoais; da kryptonita que é essa medida do mergulho. 
    De uma maratona diária para ganhar um cartão em maio com o adjetivo: guerreira. De uma vida inteira calada para ganhar o apelido: princesa. Da dieta, da intervenção cirúrgica, dos corseletes, das unhas que não deixam trocar o pneu.
    Do requeijão no copo de plástico e do molho de tomate na caixinha; na minha vez, tenho que gastar com copos de vidro sem nada.

    Da mudança climática, dos dois sóis no meu verão com um ventilador em devolução há semanas. De biquíni de cortininha que enche de areia, de prancha para meninos e baldinho colorido para meninas, na praia. Do Além do bojador ser deles e elas nascerem penélopes. 
    Do tarde para começar, do cedo para partir, do sempre em tempo de perdoar, o que nem sempre é perdoável sem Deus. 
    Dos motoristas que não enxergam a velhice, dos banners de empresas de empréstimo consignados que exploram os sonhos e roubam a sobrevivência. Da falta de concesso sobre a voz do Milton Nascimento ser a mesma que a divina; de um mundo masculino que há muito silenciou a Elis Rainha. 
 
 
 
 

4 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, Die XIX mensis Ianuarii, anno MMXXIV

Prezada Maestra da Regência Plena

Li atentamente a protagonista versando os avessos de seus desejos. Preciso aqui recorrer de maneira informal ao Mestre Lacan, que nos ensinou, e eu vi lógica nisto, que ao interpretarmos o desejo, devemos levar em conta que é como restaurar aquilo a que o sujeito não pode ter acesso por si só, a saber, o afeto que designa seu ser e que se situa no nível do desejo que lhe é próprio. Não disse exatamente com estas palavras, mas está contextualizado.

Bem, enfim Desejo é Desejo e pronto. Aí a moça posta um desejo, ao qual, data venia, não entendi nada. Portanto, rogo como um rábula, uma plausibilidade pela classe:

"Da opinião de um um homem branco hétero, da admiração de um homem branco hétero — porque só a teria se eu fosse um homem branco hétero. Tampouco da atenção, dos conselhos, da exibição e da vaidade de um homem branco hétero. Das mentiras."

Três frases imponentes, sendo a última, bem enfática e curta, sem verbo e sujeito oculto - "Das mentiras."

Longe de mim fazer uma análise baseada em circunstâncias e dados/falas únicos, mas confesso que fiquei sem entender nada do que ela desejou transparecer.

O bom de vir aqui é que sempre tem pontos de reflexão.

Um abraço!!!!

Amanda Machado disse...

Minas gerais, 19 dias do primeiro mês do ano de 2024

Honorável mestre das interpretações psicanalíticas,
o desejo só é bom se catapulta o sujeito para algum lugar a ser explorado (mesmo que dentro dele). Porque um "bonde quebrado" só traz desalento, neste caso, o desejo é só restos de sonho, difícil de carregar/ arrastar por aí.

Bem, quanto ao desejo manifestado pela protagonista e incompreendido (talvez voluntariamente) pelo analista da pitangueira, nada mais é do que a expressão de algo menos universal e mais particular: DE UM. Talvez a protagonista já saiba ou tenha pistas suficientes de que aquilo que "um homem hétero branco" pense sobre ela é completamente dispensável de atenção e desejo. Talvez seja isso...

O bom de tê-lo aqui é sempre o café com a conversa agradável.

Abraços

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 20 janeiro 2024

Prezada escritora, poetisa e cronista das vicissitudes femininas

Sua explicação foi contundente.

Um abraço

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 22 de Janeiro de 2024

Caríssimo Paulo,

Desta maneira, fico satisfeita então! Fechemos essa pauta por hoje. 😊
Abraços,
Uma ótima semana!