domingo, 4 de fevereiro de 2024

Esse infinito que talha o céu e mora no fundo do copo

    Tem um bebê no meu colo, ele está dormindo e não quero acordá-lo. Tem uma mãe no reflexo do espelho ela está cansada e eu não quero pedir que me ajude a manter o bebê no meu colo dormindo. Tem um entregador, tocando o interfone, não quero deixá-lo, esperando, tampouco acordar o bebê e sobrecarregar a mãe. Logo, o bebê vai chorar, a mãe vai acudir no cansaço e o entregador vai dizer que eu demorei.

    Tem uma marca no meu travesseiro, um retrato seu na minha agenda antiga, da qual não tive coragem de me desfazer ainda. Tenho esse livro datado, com compromissos passados que não vão me levar a lugar algum.
    Tem um nome do qual eu não me esqueço. Tem um rosto que se apaga um pouco mais a cada dia, tem um perfume que nunca mais sairá da minha roupa; tem um sentido que não vale mais um pensamento.
    Tenho um horário na análise, que eu talvez desperdice; não sei se desmarco ou invento uma história na qual eu não reclame. Tenho vergonha de me lamentar.

    Tenho um tapete novo na sala, gosto dele, de como ele orna com os outros elementos do cômodo, mas não deixo de pensar que ele é mais áspero que o antigo. Não sei se me acostumei demais a pisar no macio. Tem uma borboleta na minha janela, não me levanto para não espantá-la, deixo a água do café ferver mais tempo, na esperança de vê-la levantar voo. A chaleira apita mais forte, me assusto com um barulho no corredor e no segundo que eu deixo de olhar as asas, eu perco de vista a borboleta para sempre.
    Tem um mundo lá fora que talvez eu deva experimentar, mesmo que o café esteja fresco e eu goste tanto de estar aqui.
 
    Tem alguém que quer ir e eu não vou parar. Tem alguém que quer chegar e eu não vou fechar a porta, se ele souber esperar, chamar com cuidado e limpar os pés antes de entrar. Tem alguém que é dono da minha casa antes de mim, tem alguém que mora numa casa da qual sou dona; penso se não devemos nos assentar onde é nosso e devolver o que é do outro.
    Tem um anglo-saxão no apartamento ao lado. Eu digo anglo-saxão, porque foi assim que ele se apresentou para mim.Tem um livro com poesia africana na minha mesa, com um Sankofa que eu quero ter como quadro ou tatuagem. Tem uma porta emperrada no armário de papéis e eu não sei se passo óleo ou a deixo fechada por mais algumas semanas.
     
    Tem um exército que avança e outro que recua. Tem exércitos que nunca se movem, estão à espera de silêncio e sangue; mas tomam suco de caju, cuidam dos jardins dos quartéis e pintam as guias de cal.               Tenho prazos e insônia. Tenho festa de aniversário e férias que acabam na segunda-feira — amanhã. O que significa que todo mundo envelhece, além de mim, e que eu não vou mais andar descalça durante os meus dias. Sou uma mulher pré-histórica: faço registros cuneiformes nas paredes da minha caverna, tenho o cabelo desgrenhado, ando descalça e alerta aos ataques dos animais.
    Tem uma zeladora sensata que cuida do meu prédio, bate à porta e anuncia o erro. Dá ordens, nunca me trata como uma filha que quero ser, não passa a mão na minha cabeça e não diz que tudo ficará bem. Mas me manda separar o lixo e por para fora, antes da meia-noite, pagar o condomínio em dia e não deixar a música alta. A zeladora é, finalmente, a maturidade.

    Tenho os olhos para o céu o dia inteiro. Sou pré-histórica também com a natureza. Lembro que o último céu do ano foi o mais bonito, embora eu tenha me quebrado à tarde. O de hoje não é tão fotogênico, mas eu não me parto, além do que já estou.
    Tomo o café que eu mesma fiz e passo a mão na minha cabeça agora. Como minha mãe faria, se eu pedisse ou chorasse na sua frente. Dois meses para o nada, quatro para algo que não tem mais volta. Entre o céu e o café, a certeza do que é bonito se instala. 
    A zeladora bate à porta, mas é domingo, justifico que não tenho obrigações para hoje. Não peço desculpas, não separei o lixo, mas sei o que é bonito. A zeladora é, finalmente, a consciência.
 
    Essa casa pequena, essa casa tão longe, na qual não chego nunca, mas da qual também não fujo. Esse telhado pesado demais,  que não me arrebente, que não me sufoque, que não pese mais as asas da borboleta. Essa parede de pastilhas, da qual todo dia cai uma, esse céu nublado que anuncia o temporal, esse tapete áspero que não me afasta do chão. 
    Tem, nisso tudo, esse infinito que talha o céu e mora no fundo do copo de café que eu passei agora há pouco e que bebemos, eu e a zeladora; sem estardalhaço.



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