quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Adão e Eva ao contrário

    Ela não comerá a maçã, porque não é facilmente persuadível; você não dará costela alguma para que ela seja feita, porque a sua carne não é fundante da humanidade. 
    Dentro deste mesmo mundo, paraísos e desmoronamentos sucessivos. O belo e o feio numa mesma árvore sem nome. 
    A roupa já é mais por costume do que pudor, ninguém se envergonhará com o nu depois de uma mordida ou de um banquete completo.
    Nenhuma serpente os perturbará, mas todo o resto sim; os ciúmes, as investidas eróticas alheias, o tédio, aquilo que ficou para trás, as dívidas que contraíram quando construíram a casa.

    Ninguém comerá aquela maçã e os vizinhos saberão das discussões, das caras amarradas, da sogra que chegou sem avisar e ocupou todos os espaços do varal, onde vocês penduravam suas toalhas, depois do banho. 
    Nem todos os dias Vinícius de Morais tocará nas caixas de som do apartamento, pelo qual pagam longas prestações. O pão dormido, o bolo solado, o arroz empapado, o café ralo, a falta de açúcar e entendimento. O diálogo não há, não tem mais emoção na dispensa e chove muito para ir até ao mercado agora.
    Às vezes, no banho, lastimarão o abandono do barco em favor da casa. Às vezes, na cama, lamentarão os sonhos individuais perdidos em nome daqueles partilhados. 

    Ninguém nascerá de uma costela fundadora, ninguém será o osso inicial. As cortinas, os tapetes, os amigos em comum, as plantas que morrem diariamente afogadas ou secas, as viagens que não puderam concretizar, o armário embutido que por dois milímetros atrapalha a porta e as capas de almofadas sufocarão. 
    A labirintite da sua mãe, a sinusite do meu pai, o número do Pis/Pasep, o chá de revelação, o tamanho da fralda que veio no convite que se perdeu, nada disso foi a serpente quem provocou. Eva não tem culpa. Adão não foi enganado. Porque tudo isso já fazia parte do paraíso prometido.
 
    O Éden é também essa fumaça que vem da rua, esse espelho embaçado no banheiro, o lixo que ninguém leva para fora, o parto de fórceps de um dos dois, a escola montessoriana que um estudou enquanto o outro sentia náuseas com o aroma  do mingau de banana de todos os dias da creche a qual frequentou. 
    O Éden não foi destruído pela desinformação ou curiosidade feminina; o jardim não desmoronou pelo descuido de Adão.
 
    O pecado original é a poeira cinza que entra pela janela da cobertura, é o barulho que invade os fundos do apartamento térreo, é a tosse de madrugada pela fumaça dos carros que inalou, enquanto caminhava. O pecado desencadeador é o brilho perdido, a admiração que não se encontra, o inseto que rodeia a lâmpada e ninguém se levanta para ajudá-lo a encontrar a saída ou uma outra luz. O único pecado é entregar a pedra nas mãos de Sísifo sem assisti-lo na subida.
    A serpente não falará o mesmo idioma que vocês compartilham, não tentará persuadir Eva, tampouco sussurrará qualquer coisa para que Adão não desconfie. O pecado crucial foi quando a voz de Eva se tornou inaudível para Adão e ele irreconhecível para ela.

    Porque não existe Éden sem dor, não condenarão existência alguma quando findarem. É triste, mas também consolador que o mundo não se acabe depois de vocês. 
    Os vizinhos saberão de outros, os ciúmes cercarão terceiros e as suas ruínas não serão fotografadas, pesquisadas ou preservadas. O Taj Mahal já existe, a muralha da China não se moverá depois de vocês se apartarem. O mundo continua o mesmo e a história da serpente se repetirá pelas próximas gerações; embora a culpa de Eva pudesse ser dissolvida nessa. 
    O apartamento será financiado, de novo, para outro casal. Outro poeta deixará de frequentar a casa aos poucos e os insetos farão círculos de rasantes ao redor das lâmpadas que outros também não apagarão.

    Um homem e uma mulher podem mais do que fazer um filho. Uma mulher e um homem podem mais do que carregar o peso de um paraíso em desencanto. Adão e Eva podem salvar sua própria humanidade depois de uma demolição. O Éden não termina quando o último quadro é retirado da parede, mas quando ninguém mais se aproxima da moldura.



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