domingo, 18 de fevereiro de 2024

As sete cabeças vulneráveis e o coração inviolável da hidra

    Sete cabeças a Hidra de Lerna ostentava em seu corpo de mulher; pavor de qualquer homem.
    Uma mulher com sete monstruosas cabeças, que se regeneravam a cada ataque. Cortar a cabeça da hidra não era o suficiente; atentar contra as cabeças da mulher era desperdício bélico. 
    Cada tentativa um renascimento. Imagina o horror: planejar, se armar, se colocar à distância calculada — nem mais nem menos —, acertar a cabeça, degolar, e antes de comemorar o feito, a cabeça partida voltava íntegra ao pescoço.
 
    Sete cabeças que não se curvavam ao inimigo. Sete consciências que não podiam ser submetidas. Sete mentes sobreviventes às violências. 
    Uma hidra-mulher que assustava os homens. Uma monstra de sete cabeças absolutas. Nada e ninguém a temer. Uma gigante que não podia ter qualquer cabeça ceifada.
    Sete cabeças de sonhos, planos, vontades, virtudes e defeitos. Sete cabeças prodigiosas e igualmente estúpidas.

    A mulher-hidra de cabeças indestrutíveis caminhava sempre só sob os ataques dos heróis gregos, que cobiçavam decapitar definitivamente a mulher-monstro.
    Cada cabeça uma teimosia, a insistência em não acabar. A Hidra de Lerna, caminhando sob chuvas de flechas, punhais e espadas; a Hidra de Lerna sem um minuto de paz.
    Cada cabeça uma demonstração de resistência ao perigo; a cada renascimento, um homem vingativo despontava.
    Sete cabeças que serviam ao medo, à curiosidade, ao desafio masculino; sete cabeças mais extraordinárias que as vidas felinas, porque essas sim se acabavam.
 
    Sete coroas caem ao chão, sete coroas voltam ao seu lugar. A cabeça da hidra sempre vulnerável, porque acertavam o alvo, mas também resiliente, porque logo se erguia antes de um novo ataque. Sete coroas que não se perdiam no sangue, na aflição, no barulho ensurdecedor das investidas hostis.
    Terá sido amada a hidra ou a mulher? Terá amado a mulher ou a hidra? Quem em Lerna teve algum sentimento pela hidra, que não o medo? Quem desejou proteger a poderosa Hidra de Lerna das armas dos filhos de Zeus? Em quais travesseiros terá a hidra sonhado? Em sete cabeceiras de cama ou em uma cabeceira em que coubessem os sete sonhos? 

    Sete grampos caídos dos penteados, sete secadores para  os cabelos compridos da mulher-monstro. Terá tido algum dia de relaxamento completo? Sem luta, sem ataque, sem rir dos heróis arruinados? 
    Sete cabeças com ideias síncronas ou sete conflitos cotidianos? Se uma cabeça decretasse uma sentença, como as outras se comportavam? As cabeças eram um time ou agiam isoladas? 
    Sete chapéus que não aproveitavam as férias ou o verão. Sete demônios que deveriam ser combatidos pelos anjos musculosos e a Hidra de Lerna para sempre atarefada.   
    Sete couros cabeludos escalpelados; sete cabelos refeitos em segundos. Sete maneiras de assistir ao morrer e nascer de novo. Sete fins e recomeços. 
 
    Sete longas tranças sem príncipe ou resgate. Sete cabeças ambicionadas. Sete alvos diários e a tentação constante de matar sete ideias.
    Para conter as cabeças da hidra só o fogo, depois do ataque. A receita do extermínio quem pensou foi também uma mulher. Nenhum herói se sagraria vitorioso se não fosse uma oitava cabeça feminina. A besta de sete cabeças nunca mais assustou. A hidra-mulher-dragão afogou em paz depois do fogo.
     O que nunca ocorreu aos guerreiros é que o coração da hidra era único. E mesmo depois de assassinadas cada cabeça, o coração permaneceu intacto. 
 
    Para cada sete cabeças vulneráveis, um coração inviolável de hidra. Em Lerna,  Frutal, Viena,  Alegrete, Hanói, Maragogi e Boston ainda há homens que tentam decepar cabeças que não podem ser arrancadas e ainda há mulheres-monstro cujo coração é incompreendido.


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