domingo, 21 de abril de 2024

A cadeira morna da sala de visitas

    O futuro sempre esteve aqui, nos cadernos de dez matérias que terminam com muitas páginas em branco, nas roupas de festa que uso, no máximo, em duas ocasiões, mas não tive coragem de tirar do guarda-roupas, ainda, nos copos de requeijão que se acumulam debaixo da pia, na proporção dez por um morador, na mão que falta ou na que socorre; nas que se revezam nesse exercício. 
    O porvir já está aqui do lado de dentro, na incompreensão do amor, da guerra, da palavra, no dito pelo não dito, nas cadernetas com senhas anotadas, número de CPF, números de telefone sem um nome, nas frases e parágrafos inteiros de um texto que nunca se realizou.
 
    Está na prova que eu fiz no ano passado, cujo resultado será na semana que vem. Nas imagens que salvei no celular e com as quais não me identifico mais, na resposta que pensei, mas não enviei ainda para a amiga tão antiga, desde sempre.      
    Nos coletivos que eu não uso, mas que aprendi, caso precisasse algum dia, panapanã, vara, resma. Na primeira pessoa do plural, a quem eu recorria para escrever meus trabalhos e na primeira do singular que eu me autorizo agora.
    O futuro é o sol nascente e o que se põe nesse instante, alaranjado e melancólico outonal. O Dez Chamamentos ao Amigo de Hilst e a poeta que nasceu hoje e o lerá atônita em dez de maio de dois mil e trinta e sete. A batida do dedo mindinho na mesa de centro, o enfeite de porcelana na casa da avó.
 
    Está na sessão de cinema de domingo que deveria servir para me ajudar a não justificar a minha tristeza ou a não ter uma angustia racionalizada. No álbum salvo no tocador, lançado há mais de trinta anos, que eu ainda não ouvi. No plano de aula que o professor faz, enquanto escrevo, nos moldes de letras do alfabeto com as quais alguém aprenderá um mundo esta semana, nas anotações do dono da mercearia, que vende fiado.
    No prato pelo qual salivo, enquanto espero, no restaurante ao qual eu fui pela primeira vez, no bater das asas de uma pomba na praça e na música do Timbalada que me acompanha há dias, de um tique-taque no meu coração que renascerá. O futuro promete o renascimento, mas também é o afogamento em tristezas e constatações sentimentais. É a minha esperança e trauma projetados na tela de uma praça que exibe documentários em dias de festivais internacionais. É o décimo primeiro andar de um prédio no Centro, é o apartamento comprado na planta, cujos quartos parecem menores do que uma cama de casal.

    O futuro é esse lençol de pequenas margaridas estampadas que eu comprei para ter noites de sono revigorantes, mas que tenho que me contentar em só ter manhãs melhor decoradas. É o ingresso para o show da banda que só virá em setembro, o ultrassom que revela a vida encapsulada que só cederá em dezembro. É o cão adotado e a feira onde esperam outros. O daqui em diante também é daqui para trás; o impulso que salva, que muda, que anuncia um novo repertório. É o dente de leite que cairá, o siso que começa a incomodar. 
    É a casa recém-pintada para alugar, as paredes descascadas para denunciar o abandono; é a solidão e o encontro; o desejo de ser só depois do encontro ou de estar junto depois de experimentar os cômodos silenciosos pela ausência.   

    O futuro é o milésimo desse instante que eu gasto para falar com desconhecidos enquanto os íntimos descansam na outra sala e não podem mais me ouvir hoje. É o compromisso desmarcado e o outro assumido no lugar, depois de três minutos de ócio almejado. É a rainha, no xadrez, cujos movimentos são ilimitados e, por isso, imprevisíveis para o amador. É o botão da calça seguro somente por um fio de linha e o zíper que só se movimentará mais uma vez, antes de emperrar; mas não sabemos disso.
   É a perna flexionada para o mergulho, antes mesmo do encontro entre o corpo e a água. É o extintor na parede em um prédio que o fogo nunca queimará; é o terror antes da ligação para o um nove zero. É o frio na espinha do infrator antes do crime e o vento que anuncia o assalto, antes da voz e da bala; é a bolsa no chão.

    É a minha invenção de descanso, paraíso e amor incondicional ou sublime; ou os dois. É o café que marquei, mas não vou tomar por causa da chuva, do pneu furado, do relatório final de última hora, da inflamação na garganta ou da loucura de um parente próximo que pulará da janela em frente à minha.
    É o sonho acalentado por mais de trinta anos e, pela primeira vez, esquematizado numa página da agenda. O futuro é o vinho na taça, a garrafa no supermercado e a leitura do código de barras.
    — É...até que cabe no orçamento.
    É o barulho do vidro no carrinho de compras de metal e o reflexo rosado no azulejo branco da cozinha, quando a luz do final de tarde transpassa a garrafa. É o brinde, o primeiro e o último gole.
     É o anzol na loja de materiais de pesca esportiva e o poema da Adélia sobre limpar os peixes, enquanto os cotovelos da mulher e do marido se tocam na pia.

     O futuro é o purgatório da espera por justiça, pelo equilíbrio, pelas seis da tarde de sexta-feira, promoção e aposentadoria, pela porta aberta por alguém que nunca virá. É a angústia de Florbela, Silvia Plath, Ana Cristina César,  Virgínia Woolf e o desespero amarelo de Van Gogh. É o cursinho preparatório, os simulados, as piadas, o desconforto com mentores que estimulam a competição.
    O porvir é o vizinho ranzinza que segura a porta do elevador e o simpático que não separa o lixo. É o círculo de experiências numa reunião e a minha cadeira sem calço, que balança e, por isso, eu não estive lá. É a travessia do Atlântico em uma carteira de escola, na aula de Geografia. É a folha semi-escrita; nunca a completamente em branco. É a cadeira já morna, na sala de visitas; é o cheque-mate com a rainha.




4 comentários:

John disse...

A única capaz de fazer um belo texto recorrendo à Timbalada

Amanda Machado disse...

Hahahaha
Aposto que já está na sua playlist do dia!👀
PS: Tem vindo mais aqui só porque sabe que o espaço está com os últimos posts contadps...

John disse...

Claro, Timbalada tocou o dia inteiro em Lisboa!
Justamente, ficarei aqui até a minha autora favorita mudar de ideia. Vida longa ao blog!

Amanda Machado disse...

❤️Que assim seja...