quarta-feira, 1 de maio de 2024

Que saber que a coca-cola é gelada não garante a dissolução da sede

      Que saber como são concebidos os filhos e que, no caso de tê-los, é recomendável, antes, ir à ginecologista para que ela receite ácido fólico, atividade física regular, dieta equilibrada e boa sorte não significa que vai saber como segurá-lo no primeiro dia em casa, enquanto atende à campainha e afasta delicadamente o cão da porta, com um dos pés, para que ele não fuja. Tampouco garante que saberá responder as inúmeras perguntas da primeira infância ou ter paciência com elas, lidar com a indiferença adolescente e o desespero reprimido do adulto que nunca mais perguntou nada. 
     Assim como estar informada de como evitar a gestação, sobre os métodos contraceptivos, o preço da educação e saúde de qualidade e que o planeta caminha para uma pane ambiental, não resolve o dilema entre o sonho infantil e o pragmatismo recente, também não interdita os muitos outros partos que virão.

    Que não aprisionar pássaros em gaiolas, peixes em aquários, cães de maior porte em apartamentos pequenos e não alugar um haras, só para comprar um cavalo, que verá, como um pai ausente, cada vez menos, a medida que deixa de ser potro não garante a mesma ética com outros seres vivos. 
    Não usar roupas ou acessórios de pele ou coro animal, mas vestir a roupa costurada por mãos escravas orientais. Defender direitos igualitários de gênero e raça, não poupa a empregada da louça suja na pia nem que ela recolha sua roupa íntima pendurada na porta do box do banheiro. Não mentir não é o mesmo que ser verdadeira; doar tudo o que se tem não é generosidade; dividir é.
 
    Aprender como fazer a declaração do imposto de renda, que consiste em guardar recibos o ano inteiro e avisar, no ano seguinte, à fonte — especialmente as de serviços pequenos — de que vai utilizá-lo, ter os números dos documentos à mão e salvar cada informação lançada nada disso a protege de uma carta da receita federal, cobrando uma restituição indevida. Fazer aulas de direção, nunca sair sem o cinto de segurança, sem os documentos e a medalhinha de São Cristovão, pendurada no painel do carro  não assegura a atenção do pedestre ou a perícia do motociclista.
    Não dever ao banco, ao fisco, à empresa de cartão de crédito ou à que recorreu para o empréstimo, mas atravessar a rua para não passar em frente ao mercado de frutas e verduras, pelas folhas de couve, agrião e chicória, pelos brócolis, cenouras e dúzias de tomates e laranjas pelas quais não pagará esse mês, ainda, só assegura uma certidão negativa oficial e mais nada.

    Esboçar um itinerário, pesquisar roteiros, estudar a língua estrangeira, se antecipar aos possíveis imbróglios culturais, comprar as passagens, reservar estadia, arrumar as malas e se sentar na poltrona do avião não a ampara, quando estiver no ônibus errado, com sede e fome às dez da noite e não conseguir se comunicar com mais ninguém. Que depois do silêncio, de cento e cinquenta quilômetros de distância do lugar planejado, da fome e da sede, saber que a Coca-Cola é gelada não garante o fim da secura. Conhecer um outro país ou vários deles não credencia ninguém para ser viajante.
    Atravessar uma alameda, uma viela, um viaduto, uma linha, fronteira ou continente pode exigir calçados especiais, passaporte, cartografia, idiomas e bagagem e nada disso garante o trânsito entre turista e viajante.

    Que saber como apartar uma briga, dissuadir ou sair de uma não significa ter paz. Que engolir o choro não garante a vida adulta e que o conflito mais radical é o que se estende pela história, cujo início parece tão apagado que já não sabe contra quem é a luta; mas acorda todos os dias com os punhos cerrados.
    Que rezar não garante o céu, que não rezar não envia ninguém ao inferno imediatamente sem apelação da defesa. Que ao escolher um lado, deixamos de ver uma paisagem bonita, mas se não escolher, corremos o risco de fazer a viagem no corredor, só com fragmentos de perspectivas. 
 
    Saber que uma coisa acabou  não garante o fim definitivo de nada, porque há a paisagem, os fragmentos de perspectivas, os filhos das mães que os quiseram e o das que os tiveram. E, ainda, os pássaros soltos e as trabalhadoras domésticas em cárcere, os impostos mal declarados, os pequenos comércios de esquina. Há as passagens de avião em promoção, as pequenas grandes viagens subjetivas, romper a linha imaginária, seguir em frente e abrir o portão e, depois, abandoná-lo definitivamente. Saber que uma coisa acabou é velar o finado e nem sempre seguir em frente, mas para outro lado, por uma Coca-Cola gelada e, finalmente, pelo perdão ao inimigo remoto .



2 comentários:

John disse...

O tom melancólico não combina com o que se espera do feriado, mas não se pode negar que cai muito bem ao seu texto. Já temos um título para o próximo livro? :)

Amanda Machado disse...

Título não falta... mas, ao menos por enquanto, é só o que temos. Feliz dia do trabalhador!