domingo, 14 de abril de 2024

O destino da mulher de sal

    Não é muito grande — coisa de menos de dez metros quadrados — não é um primor estético, tampouco indispensável a qualquer coisa cotidiana. Mas é um descanso inusitado para os olhos no meio da rua, da semana, da dureza dos dias. Não é estrategicamente localizado ou milimetricamente projetado, não tem a intervenção de um profissional, nem operacional tampouco de planejamento. Mas, ainda assim, parece racionalmente concebido. Há uma estrutura ali que captura os olhos, uma dinâmica de cores, formas e tamanhos que apaziguam angustias; é uma organização esquizofrênica que nos perdoa pela nossa própria bagunça. Um monumento à simplicidade, ao rústico, ao caótico e ao lento.

    É um retângulo de concreto, semelhante a um tanque desses em que se mistura massa de cimento em grandes canteiros de obras. Mas, neste caso, em proporções muito menores, fixado ao chão, repleto de terra e adubo.
    Nas bordas do retângulo cinza, cacos de pisos, de diversos tamanhos e cores, que salpicados formam prismas de luz nas paredes e muros da casa, quando um raio de sol bate. Só por esse instante valeria a contemplação, só por essa luz o jardim doméstico parece monumental.  Mas ainda há as instalações excêntricas com garrafa pet para afastar os gatos, da casa e da rua, das flores mais sensíveis e um universo de insetos que se nutrem, reproduzem e mantêm esse inusitado bioma.

    Quando me mudei para o prédio recém-construído, esse universo multicolorido já existia na mesma rua. A primeira vez que o vi, tirava medidas da janela para instalar uma persiana, a qual mantenho sempre aberta, quando estou em casa, para não perder o espetáculo comezinho da natureza tutelada pela maior responsável pelo retângulo mais colorido da cidade. 
    Acompanhei o plantio e o desenvolvimento de grande parte da coleção de mudas que resiste lá agora, também testemunhei o desgaste natural da jardineira, que já era bastante idosa quando a conheci e fiquei sobressaltada com cada um dos acidentes que ela acumulou nos últimos anos.
    Mas quando seu corpo sofria um impacto maior, era comum assistir e participar do rodízio entre voluntários que se organizavam no seu portão e apareciam para ajudá-la com o jardim, sensibilizados pela importância que ela sempre deu a ele e mobilizados pela beleza que ela proporcionava a qualquer um que passasse em frente ao retângulo das boas intenções.

    Eu mesma aprendi a cuidar de Begônias, Girânios, do Camarão Amarelo, Lavanda, Girassol e até dos musgos, na casa dos fundos do meu prédio. Aprendi a ver a profusão de cores de muito perto, sentir as raízes e o movimento que as minhocas fazem ao manterem o solo arejado. É como se pudesse contemplar um Van Gogh a centímetros de distância.
    Descobri, ainda,  que dividíamos muitas semelhanças, profissionais, gostos gastronômicos — doce de laranja cristalizada, arroz doce, bolinho de mandioca, lambari frito, romeu e julieta —, a reverência  à natureza e à liberdade dos seres, o gosto pelo cheiro da terra e o apaziguamento junto ao trabalho manual. 
    Conheci da jardineira a sua ideologia pelo partilhar belezas, construir afetos sem promessas ou palavras, mas com flores, cores e objetos inusitados. Assisti a sua resistência muito discreta e cheia de dignidade às especulações imobiliárias; vi a sua casa se tornar a última, a única, artigo super valorizado e não cedido por dinheiro algum.

     Nos últimos meses, a saúde da protetora do jardim se declinou ainda mais, seus dias na casa se tornaram menos autônomos e as visitas mais frequentes. Logo, o jardim se tornou ainda mais coletivo, com muitas mãos, muitos tutores, uma espécie de espaço público, mesmo que rodeado por antigas grades. Flores rodeadas de gatos e gente, foi assim que ela viu o jardim da própria casa pela última vez. A dona do retângulo das boas intenções, do espantalho da normose nossa de cada dia se despediu muito frágil, mas consciente de algum legado, eu acho.

    Depois dela, a casa também não resistiu, o telhado colonial da varanda é o primeiro a ser maculado. Cada telha é cuidadosamente removida para ser aproveitada em algum simulacro arquetetônico caríssimo. Cada item retirado é uma despedida da vida que eu conheci até agora.
 
     Por enquanto, o jardim é mantido, empoeirado, sem cuidados, com flores secas, mas seu fim não tardará.
    São seus últimos dias, queria segurar o que não posso. Tenho chorado pelo que ainda existe, mas está perdido. É esse o meu desafio ancestral, ir em frente sem a hesitação da mulher de Ló. Corro sempre o risco de me tornar pedra de sal, assim como a mulher bíblica, não pela insensibilidade, mas pela dificuldade em admitir as perdas e não olhar para trás nunca.

5 comentários:

John disse...

Mais um excelente texto! Ainda me surpreendo com sua capacidade de articulação de temas cotidianos com tamanha sensibilidade.

Amanda Machado disse...

Mas nossa...você por aqui?! Cansou de Faulkner e veio fazer essa visita gentil...rs
Obrigada! Beijocas

John disse...

Quem é Faulkner se comparado a Amanda Machado!?rs
Beijocas!

Amanda Machado disse...

Deixa a agência de fomento à pesquisa ter acesso a esse tipo de declaração, para ver se o desligamento não vem?! rs

John disse...

A FAPESP não conhece nenhum John mineiro, sobretudo nesse endereço de e-mail 👀