sábado, 13 de abril de 2024

Uma rua com o seu nome

    Há uma rua com o seu nome na cidade. Vi, depois de tantas vezes ter passado por ela e nunca, antes, me atentado. Não é a sua rua, não é o seu nome completo, por isso sei que a homenagem só é para alguém cujo primeiro nome é o mesmo que o seu, mas, ainda assim, há esta rua com o seu nome na cidade. Talvez eu nunca tenha reparado antes porque somente hoje alguém com o seu nome faz tanto sentido para mim, é como se a rua me lembrasse que agora tem você e que nunca mais esse nome será um desconhecido, como fora antes. 
    Na cidade, tem uma rua com o seu nome e a primeira vez que eu a vi determinava ali a sua marca no meu itinerário; passagem que fica. Posso andar bem longe dela, posso nunca mais querer pisar nela, até tentar me esquecer, mas ainda assim terá uma rua com o seu nome.
                                                               
    Tem uma rua com o seu nome na cidade e toda vez que um cão ladra, me lembro da rua; um alarme soa, me lembro do seu nome na rua; uma mariposa dança, me lembro de cada uma das letras do seu nome; um avião sobrevoa a cidade e nela está a sua rua. 
    Uma placa pregada num poste de luz me lembra que depois de você, todas as ruas terão outro significado, pois além da rua que tem o seu nome, tem as ruas vizinhas da rua com o seu nome e as ruas extremo opostas à rua com o seu nome. Uma cidade gira pelo seu nome agora e eu não andarei mais perdida.

    Há uma rua com o seu nome e, depois do que essa constatação me provocou, cogito fazer terapia para não me entregar tanto aos nomes das coisas; penso em procurar um guia espiritual que me afaste da terrível possibilidade de depositar todas as minhas orações no altar que ergui para você, planejo empenhar fuga para um lugar cujo idioma não se pareça com esse nosso, para me afastar do risco de outra rua com o seu nome. 
    Essa rua é um amuleto, um oráculo, um vício, uma chave, uma passagem sem volta ou a galeria para a minha salvação. Essa rua é enigma, é pergunta sem resposta, é uma análise hermética em um livro em latim. Essa rua é o filho dileto sentado ao lado direito do Pai, é o santo do pau oco com contrabando dourado dentro, é a insurreição que explodiu numa madrugada. Essa rua é o beco sem saída, a rua da amargura e as cadeiras de sol coloridas na calçada, com senhoras distintas, brindando com o refresco.

    Tem esse seu nome em uma rua pela qual eu passava incólume e agora ela abriga cada uma das minhas evasões; nunca mais a minha geografia será a mesma.
     Tem uma placa pendurada, com um certo nome, no poste de uma rua e toda vez que a leio tenho taquicardia e suspiros muito públicos, por isso eu me pergunto: posso ainda ser uma feminista?
    Uma rua pequena com casas comerciais em um canto obscuro da cidade é chamada pelo mesmo nome que você, mas eu passo por ela como se fosse a Champs Elysees e eu me indago: ainda posso ser decolonial?
    A rua com o seu nome me desestabiliza, tem calçadas de paralelepípedos irregulares, mas contornos delicadamente pintados de cal. Essa rua pequena, sem grande importância no mapa da cidade é, agora, meu referencial; teórico, metodológico e geográfico. Essa rua derrotou o meu flanar. A rua com o seu nome, contaminou meus calcanhares, meus músculos e minhas aspirações de nunca me ancorar.

     Há uma rua que desafia a minha cartografia, meus dogmas, minhas crenças, minhas ambições, metros de pedras cinzas que freiam a minha marcha rápida e exigem que eu seja mais lenta e ponderada. Há no Centro da cidade, essa rua com o seu nome e, para mim, identidade. As pedras da rua murmuram o que eu já sei e há muito, mas negava; há esse lugar dentro de um outro lugar.
    Gosto dela, mas também acho que é a minha derrocada. Passo por ela e também a evito. Defendo a sua singeleza e ataco a sua insignificância. Quero morar na rua, mas também quero viver muito longe dela.
    A rua com o seu nome não me deixa mais ser pacífica, suas casas, seus postes, arbustos em jardins domésticos me deixam em constante alerta. Já não sei mais só esquecer e a culpa é essa rua com o seu nome no meio da minha cidade.
 
    Na cidade sitiada, uma rua com o seu nome é refúgio, choupana na praia deserta, chalé nas montanhas, férias agendadas, absolvição por todas as ruas pelas quais passei e não tinham o seu nome. É a facilidade de chegar ao outro lado, de partir e também ficar. É uma rua completa, de casas, luz, coleta de lixo, humores matinais, sinal de celular, wi-fi e cachorro caramelo. É uma rua singular, mas igual a qualquer outra do país. É muito sozinha, mas relativamente frequentada; não é tombada pelo patrimônio histórico, mas é um legado do qual eu nunca me esqueço.
    A rua com o seu nome é a referência que não esquecerei até ter que parecer ter esquecido. É a linha na planta da cidade que eu saberei apontar até o fim.

   A rua com o seu nome não é minha, meu CEP não aponta para lá.  Moro noutra rua, a com o seu nome é só a minha passagem diária para me lembrar que morar ainda não está disponível para mim.
    Tem uma rua com o seu nome e ela me leva para todos os lugares, mas em nenhum você está. Uma rua com o seu nome se instalou na minha história e eu só saberei contar sobre ela quando puder falar sem suspirar.
 



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