domingo, 7 de abril de 2024

O que acontece quando nada acontece

    Uma mulher tenta passar despercebida, mais uma vez, pela porta de entrada de uma casa de repouso para idosos. Magra, pequena, de cabelos completamente brancos, parece confusa. No jardim, um senhor espera por um cortador de unhas que um parente prometeu buscar, enquanto o deixava sentado, esperando sob o sol: 
— Comi duas bananas e tomei café.
    Ele repetia insistentemente. E, por isso, existia, pelas bananas e o café às quinze horas.
    Olhos apertados, para protegê-los da luz, espera pelo parente e pelo cortador. Tinha um sorriso conformado, enquanto contava, orgulhoso, sobre as duas bananas. A camiseta colorida ostentava a frase: Vô do Arthur. Mas acho que não era o Arthur quem buscava o cortador de unhas. 
    Já a mulher idosa insiste, chega a colocar um dos pés para fora do prédio, mas é impedida de avançar por um funcionário que mente:
    — Você vai sair, mas só depois que o médico autorizar. 
 
    Um homem, também velho, com a camisa da seleção brasileira de futebol circula, entre os vistantes, de cadeira de rodas e semblante duro; nenhuma visita hoje era para ele. É agressivo com alguns visitantes que não foram lá para vê-lo; ameaça "passar por cima" de quem não der licença, quando ele se aproxima.
    Na mesa ao lado, uma família divide um litro de guaraná e salgadinhos, cantam parabéns, mas o aniversariante não sorri, só come uma empada, enquanto segura um copo descartável. 

    Nos sentamos muito próximas, mais do que consegui durante a vida toda. Cabelos grisalhos e muito curtos, seu corpo parece maior desde a última vez que a vi, ela mede o seu punho direito, com o círculo que faz com o dedo médio e o polegar esquerdo; faço igual, mas não sei o porquê. Tento a todo custo restabelecer uma comunicação perdida há muito tempo. 
    Unhas pintadas de rosa-choque, pijama de poás e chinelo da mesma cor. Nunca a tinha visto vestida de rosa e, agora, ela é toda essa massa de cor doce, alegre e infantil. Alguém que foi visitá-la levou duas maçãs e um chocolate; ela segura a sacola de presentes com firmeza. 
    Nos fundos da casa, identifico as árvores frutíferas, aponto e nomeio em voz alta: goiabeira, ameixeira e um abacateiro ao fundo. Ela acompanha com os olhos o meu dedo, mas segue calada. Nenhuma árvore é dela.

    Uma mulher muito velha segura um bebê imaginário e balança o próprio corpo na tentativa de niná-lo. O movimento parece atender mais a uma necessidade dela em se acalmar do que fazer dormir uma criança que já não está lá. No pátio, uma outra mulher de mesma idade molha plantas com um regador imaginário; absorvidas pelo trabalho, não tentam fugir, tampouco agredir as visitas. E quando eu só tiver a imaginação? A que trabalho irei me dedicar?
    Cerceadas de um mundo instalado na produtividade, sem liberdade de escolher para onde ir, mas lúcidas do seus papéis que desempenharam naquele outro mundo, as mulheres na casa de repouso não descansam um só dia.

    Quando já não temos mais meios de compreensão, o silêncio completo é pesado e incômodo demais para ser superado; é hora de ir embora. Me despeço e ela não insiste na duração da visita. Nós duas sabemos quando acaba. Encontro a saída, mas a porta está fechada, cinco senhoras tentam me ajudar, cada uma a seu modo. Um delas diz que para abrir a porta é preciso um código:
    — Um número que só os grandões têm.
    Procuro um funcionário por perto e não vejo nenhum. Minha companhia rosa sai à procura, ela quer me libertar agora. 
    Um homem jovem e alto vem nos resgatar, digita a senha, a porta se abre, mas nunca mais saímos. Zezé ficou com o chinelo rosa de borracha, duas maçãs e um chocolate meio amargo; eu fiquei com o silêncio.
   
    Mais tarde, uma mulher adulta com medo, fala de solidão na mesa de bar."Somos tão sozinhas" é uma frase de um poema da Mar Becker e uma cena de Roma, do Cuarón. A mãe da mulher no bar está sozinha, as mulheres na casa de repouso também. Ainda me lembro do homem de sorriso conformado, apregoando a vitória de duas bananas consumidas no café da tarde. Minha companhia ganhou duas maçãs e parece tão triste ainda. Talvez porque não tenha uma camiseta com a inscrição de ser avó de alguém ou porque nenhuma árvore é dela. 
    "Somos tão sozinhas" é como uma onda que ecoa na minha cabeça e eu não conto para a mulher no bar, porque quero poupá-la de algo para o qual eu não tenho resposta. Só ouço a onda e as queixas dela.     "Somos tão sozinhas", mas cinco mulheres, sentadas perto da porta aparentemente intransponível, tentaram me ajudar a sair hoje. Não há diferença entre nós. São os "grandões" que abrem e fecham as portas ainda.

    No noticiário da noite, um carro de luxo, uma morte, um suborno, no mínimo, doloso. E depois, uma matéria sobre uma delegacia que não faz ocorrências e manda a vítima voltar para a casa do agressor. Não há maçãs e chocolates suficientes para nos fazerem sorrir.
    Uma menina adoece e, ainda brinca, tão frágil abana a mão para a visita e sorri quando alguém pede uma foto. A sobrevivência é um desejo neonatal. "Somos tão sozinhas", mas não hoje, Cuarón e Becker, eu tenho a menina e a mulher de unhas rosas comigo.
 
 

 

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