domingo, 30 de junho de 2024

Numa árvore frondosa que só quem ama vê

    Ele ainda espera. Com as mãos sobre a calça de brim cinza e as pernas retas, sentado no banco de concreto, pintado de azul, tira um lenço do bolso, coça o nariz e espera. Eu quase sinto o cheiro do lenço, do tecido de algodão macio que sufoca por um milésimo de segundo, enquanto coça o nariz. O lenço é mais trejeito do que necessidade, é como olhar para a tela do celular, enquanto está numa fila.
     É um homem discreto que se aventura cada vez menos na iniciativa de uma conversa que talvez o entristeça, no final. Explicar com palavras desse mundo o que espera, é um desafio que ele prefere não assumir. 

    São quase sete da manhã e ele espera pela sua companhia do café matinal. Também em jejum, com um rosto derretido de tempo, ela sorri quando o vê e se apressa para encontrá-lo. É a única pessoa no mundo que ela ainda reconhece. Nem filhos, nem netos, nem vizinhos de longa data, animais de estimação ou funcionários do abrigo recente, ninguém é familiar como ele. 
    Os cabelos, pela primeira vez, são brancos sem tingir, a roupa é um conjunto azul do qual ele gosta e ela sabe. O batom vermelho não é coisa antiga, é hábito recente, que ele estranhou no início, mas agora gosta. Tudo o que a faz feliz, o deixa exultante também. É muito doloroso quando ela chora, se desespera ou se torna agressiva; é como se uma outra se apossasse da mulher a quem ele deseja os melhores tempos há seis décadas.
 
    Debaixo do abacateiro quase sem folhas, ele a espera todos os dias, desde os últimos meses em que ele passou a viver aqui. Nenhuma árvore frondosa no parco jardim, nenhuma orquídea nos troncos das árvores, como eles se acostumaram a plantar, nenhuma bromélia, laranjeira ou limoeiro Siciliano, mas, ainda assim, algum verde para se lembrarem do que tiveram. Todas as casas em que moraram, desde que se casaram, tinha um quintal, um pequeno pomar ou jardim. O abacateiro é o totem de lar nessa morada involuntária. Sem o abacateiro estariam mais náufragos e distantes do continente do qual se distanciam a cada dia um pouco mais. 

    Ela se apaga e ele segue na insistência da iluminação. Leio na matéria da revista sobre a longevidade insalubre de ser mulher. Viver mais e sofrer mais. Viver mais e se esquecer mais. Viver mais e se quebrar mais. Os homens vão embora e as mulheres permanecem por mais tempo; com mais dores e mais esquecimento. 
    Mas ele ainda está e a espera. Foi ele quem protelou o quanto pôde essa vinda. Foi ele quem ocultou os pequenos incêndios, os lapsos de memória dela, as noites insones e de agitação que ele contornava com ternura e música. Até não poderem mais invisibilizar as vulnerabilidades da idade, os descaminhos que a vida forja. Nem a força dela, tampouco a delicadeza dele puderam segurar a tormenta. Quando decidiram trazê-la para cá, primeiro, ele se opôs, depois, sem argumentos e sem meios de sustentar a responsabilidade pela vida de ambos, cada vez mais frágil, decidiu que viria, porque não quebra promessas com a senhora de conjunto azul.

    Tomam o café da manhã juntos e caminham na pista ao redor dos dois prédios, onde moram agora. A hérnia de disco dele é o que comanda as passadas, os  intervalos para o descanso e o fim da jornada diária. Ela sempre gostou de caminhar e se isso a faz mais contente, ele se esforça, desafia hérnias e cansaços. 
    As duas alas, separadas por uma pátio, são definidas pelo sexo biológico, por isso, casais são separados. Por isso, a espera. Primeiro, veio ela, cuja saúde era mais preocupante e a vaga para mulheres já estava disponível. Somente dois meses depois, ele trouxe uma mala e começou a passar as noites no lugar que visitou diariamente, sem nunca faltar. Às vezes ela teima, às vezes agride as cuidadoras, quebra coisas, diz barbaridades que ele nunca tinha ouvido dela, mas com ele, ela se acalma. Ele é a casa que ela conhece; ela é a casa para a qual ele tenta voltar.
    Na apresentação dedicada às mulheres, no dia oito de março, ela esbravejou, gritou, fez motim e se negou a todo custo a permanecer, sem que ele estivesse ao seu lado. Ele chegou, se sentou, puxou o lenço do bolso e secou o suor da luta que a companheira empenhou.  
 
    Amanhã, enquanto eu ainda estiver me levantando para ir à ginástica, ele estará debaixo do abacateiro; reto, calado, heroico e fiel a uma promessa.  Numa espera que não se explica, só é. 
    Como quando buscamos uma xícara, uma louça muito antiga, que já se quebrou, não existe mais, mas a qual estivemos sempre acostumados. Como se aquela única, primeira inaugurasse a consciência de xícara que criamos. Sabemos que já não está, mas será sempre a primeira a ser lembrada quando a mão busca, na profundeza de um armário, a ideia do que é ser uma xícara. Todas que vieram depois são cópias, não são a coisa. Ainda bebemos naquela primeira. Nossa sede só pode ser aplacada pela xícara primeira, mesmo que ela não esteja mais disponível às nossas mãos; seguramos outra e bebemos na que ainda é absoluta na memória. Então a louça em si já não existe como a que conhecemos, mas a ideia está lá, esta sim, imortal no tempo.

    Amanhã, quando eu ainda estiver em frente aos espelho indagando sobre o que eu sou, numa segunda-feira de manhã, ela estará de batom vermelho e teimosa, segura de que a xícara que ela conhece estará no fundo do armário. O amor é costume, dia desses eu refutei a ideia, agora, não mais. 

 


 

Nenhum comentário: