Um gato na janela, aceitando o sol do inverno, sem pressa ou outro desejo que o desvie do acontecimento de ser felino. Um gato amarelo, recebendo o calor no inverno, porque sabe o que procura e o que merece. Um bichano com a barriga para cima, que ronrona ao se esticar na janela que é só sua agora.
Um gato amarelo, ocupando o portal principal, mergulhado na inundação solar e cujo tempo, parece em suspensão; um bicho absolutamente impassível com o que o rodeia, mas em júbilo pelo que é essencial.
Nem a música nem o arredar dos móveis no andar de cima, tampouco o copo com água derrubado pelo seu movimento perturbam a sua meditação ancestral. Um gato que sabe ser.
O gato amarelo cujo próprio corpo relaxado é o seu único templo; sua bondade consigo é a atração na minha sala. Sem tela, sem histórias, sem relatórios, sem desilusões que o apaguem, sem predileção pelo que é urgente. Um gato que não se cobra, não está atrasado para nada, não quer ser mais que o gato da janela sob o sol.
O gato que não se questiona se é amado, não se curva para receber carinho, não manifesta nenhum descontentamento se a janela não se abre; só abandona.
Fecho o computador e tento me espelhar naquele agora, absolutamente desprendido. De barriga pra cima, recebo o que resta de raios lá de fora, apoio a minha cabeça no chão, fecho os olhos e ele vem se deitar ao meu lado. Passo as mãos no seu pelo lustroso e quente, ele não reclama, mas também não se derrete.
É um gato que não tem interesse em barganhar atenção, não quer saber se é desejado ou se amanhã continuarei a alimentá-lo de amor e ração. É uma lucidez selvagem, uma indocilidade doméstica, que não quer afastar, mas demarca um território que é só seu. Um gato derruba copos com água e rejeita migalhas, não espera por mensagens de texto nem que batam à sua porta. Não se ocupa com o que não pode mudar de lugar, silenciar ao redor, carregar consigo ou manter aberto. É uma disposição em receber e não perguntar se merece.
O gato sem número de seguidores, sem mensagens para responder, sem áudios editados antes de enviar. Um bicho que se comunica em presença, em gestos, sons e olhos que brilham no escuro. Sem filosofias, sem religiões, sem concepções sociais que o reprimam, que insuflem idealizações e, logo, desabem em tédio e infelicidade.
Um mamífero delgado e ligeiro que ocupa os meus dias, sem me sobrecarregar, que me faz companhia sem me prender, que se multiplica em pelos no chão e os muitos mistérios que, ocasionalmente, me deixa vislumbrar. Um gato amarelo de patas ásperas que não me conta sobre os muros que precisou escalar para se deitar no meu sofá, mas que partilha da sua boa presença. Um gato que não é afetuoso como meu cão, mas que também ensina o que pode ser amar.
Reparo no gato e, de novo, tento simular meu corpo como um templo. Desligo o celular, ignoro as chamadas no interfone, mas ainda pareço seu reflexo invertido. Tão submissa para o amor, tão incrédula na minha potência. Derrubo um copo com água e me desculpo por um litro e quilos de vidro em pedaços, peço licença para me deitar em um chão pelo qual não pago impostos e aceito qualquer fatia de bom grado.
Acho que ele tem pena, quando vem e me assiste tão sufocada e pouco dona de mim. Acho que ele me julga, quando o deixo na sozinho na sala para ser cordial com as visitas. Mas também acho que ele se orgulha quando dou pequenos passos rumo à porta de saída.
Um gato com a aceitação do que é quente, bom e essencial.
Admiro o gato, absorvo o que é do gato. Admito que não sou tão felina quanto gostaria, ainda. Fecho os olhos e aceito o sol sem me curvar. Esse sol é meu, esse calor eu mereci, aquele amor que eu não espero.
2 comentários:
Obrigada por mais essa leitura maravilhosa, Amanda.
Que bom que gostou, Keila! É um privilégio ser lida por quem admiramos.
Obrigada!😊
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