domingo, 9 de junho de 2024

O amor requer memória e esquecimento

    O amor requer cômodos; um quarto pequeno para os corpos se aproximarem sem muito esforço e uma sala iluminada, repleta de livros, numa estante, para os amantes se abastecerem de sonhos e algumas metáforas. Dois corpos, ocupando uma estreita cama e duas almas libertas que exploram mundos.
    O amor requer suspiros de saudade, antes da partida, e presença, quando é só um perfume sutilíssimo em uma peça de roupa guardada numa gaveta entreaberta. 
    O amor requer chinelos com meias e roupa de ficar em casa; vulnerabilidade na cama, na mesa e no banho e cabelo preso em um coque, com a caneta que o outro nunca encontra onde deixou. Reivindica, também, bolsa de água quente e uma xícara de chá para o caso de cólica ou um desconforto de existir que não passa.
 
    O amor pleiteia sessão de cinema e companhia para o exame médico, para apertar o botão do elevador, depois das pupilas dilatadas. 
    O amor requisita check-ups rotineiros, condutas preventivas e fármacos, este último somente sob prescrição de um especialista. O amor requer projeção e identificação; vilões humanizados e mocinhas com profundidade e um balde pipoca. O amor requisita as boas tramas ou um entretenimento barato, a depender do público ou do dia. 
    O amor solicita os históricos familiares e informações precisas sobre o cotidiano; vale mentir, mas sob risco de não sobreviver. O amor requer trilha sonora e luzes sutis, enquanto sobem os créditos finais. O amor não suporta sair da sala, antes que tudo termine como deve ser.

    O amor requer poda, destreza e irrigação; requisita algum altruísmo, generosidade e um tanto de paixão. O amor cresce em vastos campos, em vasos de cerâmica numa casa dos fundos, em jardineiras de mármore numa varanda arejada e, também, em espaços inusitados que ofereçam o que é preciso à muda. O amor atravessa concretos.
    O amor requer quantidades moderadas de adubo e iluminação direta ou indireta, a depender da espécie. O amor requisita a justa hidratação, que não o mate de sede, tampouco afogue ou apodreça as suas raízes. Mas o amor perdoa as quantidades inexatas do início. O amor floresce, perde flores e folhas, logo mais, para recomeçar de novo. O amor requisita paciência com os ciclos.
 
     O amor requer habilidade, para não enroscar a blusa no zíper da calça e maturidade, para não culpar a calça, o zíper ou a blusa, se agarrar uma peça na outra for inevitável . O amor nem sempre sabe se vestir sozinho, às vezes o amor vai nu, às vezes só erra no figurino; mas o amor não precisa de um manual de etiqueta. O amor detesta manuais. 
    O amor requer espaço no armário e a compreensão com os tecidos que amarrotam com maior facilidade; nem sempre um tempo ou ferro de passar disponíveis. O amor anda nu e descalço, mas só sente frio quando o deixam inacessível; o amor requer partilhas. O amor não está de terno sob medida no seu escritório blindado no quinquagésimo primeiro andar da Paulista.  

    O amor requer coragem para mudar e algum desconforto em só permanecer. O amor requer café recém-coado, pão com gergilim e requeijão e um pedaço de broa de fubá com goiabada, no café da manhã depois de uma noite insone de ciúme. O amor não pode ficar para sempre acordado, o amor precisa de descanso, de adormecer no cuidado.
     O amor requer renúncia, quando não se acostuma com a oscilação do barco na travessia. O amor precisa ir embora se já sabe que vai morrer afogado.

    O amor requer novidade, um pouco de bajulação e muita verdade. O amor é Lou Reed e Laurie Anderson num trago no Central Park, é o porteiro e a mulher que traz a sua marmita todos os dias e que conversam, enquanto ele almoça. O amor é a menina sorridente e a sua mãe exausta desde o primeiro dia em que ela chegou, é a fratura exposta na calçada e o irmão com o documento e o pragmatismo para acabar com a dor. É o casal de duas mulheres e a filha delas, vestidas para a festa junina da escola; todas com laços vermelhos nas pontas das tranças.
    O amor requer diferentes estéticas. O amor é contestar um texto que não valide o seu amor. O amor refuta a dúvida para não ter que pensar se é. 
 
    O amor requer passagem de ida e volta, para amanhã bem cedo, rumo ao  lugar dos suspiros, Fernando Pessoa e chá de melissa. 
    O amor requer memória na ausência e esquecimento na impossibilidade de existir. O luto do amor é confirmação dupla do que foi e do que nunca mais será. 
    O amor requer um lugar, sonhos, regador amarelo, alguém que enxergue quando o próprio olho não pode, zíper lubrificado, despudor na nudez, desistência do que nunca poderá, motim, revolta, oposição, às vezes genética — muitas vezes não —  esperança e alguém que queira aprender a nadar. O amor só não requer um homem e uma mulher para ser amor.


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