domingo, 14 de julho de 2024

O salto sem rede de proteção do trapezista

    
    Alugo a visão do mar pela primeira vez, o susto, a beleza incalculável do azul, o ar salgado, impregnando na pele, poros e pelos. Alugo uma cadeira na praia para contemplar as ondas, a areia branca e a infinidade de corpos com as faixas coloridas dos trajes de banho. Uma canga com uma estampa tropical ou marítima, colocada sob a sombra de algum guarda-sol e os chinelos de borracha para calçar quando estiver de volta ao asfalto.
     Alugo um dia na praia pela primeira vez, com olhos de uma criança não muito pequena, para que nunca se esqueça dessa primeira visão. Alugo uma primeira vez no mar, atravessando a orla com medo de não reencontrar a família, mas desejando ver tudo o que puder. A cena de um grupo de pescadores em seus barcos pequenos, abarrotados de peixes e frutos do mar, o suor, a força e a confiança na embarcação que os sustenta. Alugo a fantasia de nunca mais voltar ao continente, de me estabelecer numa casa em frente à imensidão e só saber do mar daqui para frente.
 
    Compro uma saudade em bom estado de conservação, mas não das que fazem chorar. Compro saudade que venha embrulhada numa alegria de sorriso discreto, no meio da tarde, de uma reunião de trabalho, de um exame médico, de uma fila de banco, na cadeira do dentista, na audiência de conciliação com a empresa de celular. Compro à vista uma saudade que tenha cheiro, som e textura. Que ao abrir o envelope, o cabelo macio e fino encoste nos dedos do destinatário, que o aroma de lima, café ou chiclete de menta invada as narinas e, instantaneamente, me leve a esse outro lugar, cuja trilha sonora seja reconhecida plenamente na primeira nota.
    Compro uma saudade não perecível, que não precise de prescrição médica, seguro viagem, nota fiscal. Uma saudade sem burocracia, que se instale sem dificuldade no momento da sua chegada. Uma saudade que avise que com ela nunca mais serei só. 

    Vendo uma memória bonita que não me serve mais, tamanho P. Um buquê, uma dança, uma declaração que nunca se confirmou. Uma alça da bolsa que arrebentou e alguém gentilmente deu um nó, para salvar a moça do peso dos livros sem sustentação. Vendo uma música, poema e carta ofertada, um filme que passava na TV, que alguém gostava e, por isso, o filme sempre será aquela pessoa.
    Vendo um almanaque velho, com propaganda do Biotônico Fontoura e sabonete Phebo, com receitas de biscoito de canela e de misturas para limpar ralos de banheiros e cozinhas. 
    Vendo uma memória pacífica por motivo de mudança para uma casa menor; por um preço abaixo do mercado e entrega sem custos. Vendo uma memória e aceito parcelar no cartão em até doze vezes.
 
    Avalizo um amor-sussuro, sem sustos, sem vozes dissonantes, sem ruídos na comunicação. Avalizo amores sinceros, sem perdas de confiança e disputas de egos. Avalizo amores de ciúmes muito sutis e admitidos sem dificuldades. 
    Empresto meus documentos, nome e assinatura para amantes que acreditem no compromisso e partilhem sonhos. Que sejam orgulhosos um do outro, mas sem vaidades. Organizo serenata, para o caso de resistência de uma das partes.
    Avalizo a disposição de dois desconhecidos descobrirem semelhanças e diferenças, com beijos ardentes nos intervalos entre as revelações. Dou minha fé no cartório, para distantes que desejam intimidade, para jovens ou velhos que, ao acordar, todos os dias têm um primeiro pensamento com um nome.

    Troco meu juízo pelo salto do trapezista, sem rede de proteção, com uma plateia que se levante da cadeira a cada susto, a cada possibilidade de queda mortal. Troco minhas duas mãos inseguras por uma só do artista, que não tem medo de suportar o peso do corpo, a insegurança do balanço do trapézio, a hesitação da plateia e a luz do picadeiro.
    Troco meu nome de registro, por um codinome escolhido em solo circense; algo que ria de mim mesma, que não me deixe mais ser tão séria. Troco minhas roupas cinzas, meus sapatos apertados, por um figurino brilhante, colorido e alegre; nos pés, sapatilhas ou os sapatos exagerados do bufão. 

    Negocio meu tempo por algo de menos valor e mais retorno. Meu relógio em troca de uma mariola, um algodão doce ou uma tarde inteira no banco da praça com um saco de pipoca com queijo. 
    Negocio meu currículo, meus títulos, minhas horas/aula por um copo de cerveja na venda, onde meu avô tinha crédito e eu só comprava doces. 
    Barganho minhas milhas por uma volta no carro de boi até a fazenda do doutor Amândio; meu histórico funcional por um dia de ócio. Negocio minhas obrigações por uma vassoura de galhos e palha para varrer as folhas da laranjeira no quintal.

    No anúncio publicado, vendo, compro, troco, alugo, avalizo visões de espanto e beleza, de desejo por alguma saudade e de esquecimento, de coragem pendurada e arte, de tempo perdido e de um outro tempo. Na bolsa remendada, nenhum dinheiro, oferta ou rede que garanta a mão no trapézio depois do salto, mas negocio, com muita chance de levar o prejuízo reconhecido dos maus mercadores.

 

2 comentários:

Keila Lima disse...

Doo uma lembrança triste. O sonho de ser mãe esmagado em várias tentativas frustradas de fertilização in vitro. Pagaria com satisfação as parcelas das dívidas que nos restaram, se alguém levasse a consciência daquilo que a produziu. Um casal solitário entrelaçam as mãos antes de dormir.

Amanda Machado disse...

A imagem do casal solitário (que não é, porque "têm um ao outro") de mãos entrelaçadas antes de dormir, encheu um quarto de ternura e embalou meus sonhos quando a li/vi.